O salão comunitário da pequena cidade estava em plena efervescência naquele sábado ensolarado. Era dia do tradicional almoço beneficente, um evento que reunia praticamente toda a população local. As mesas, cobertas com toalhas xadrez coloridas, exibiam uma variedade tentadora de pratos caseiros: tortas de frutas, carnes defumadas, saladas frescas e pães recém-saídos do forno. O cheiro irresistível de frango frito, café forte e bolo de milho pairava no ar, misturando-se ao burburinho de conversas animadas e às risadas que ecoavam pelo salão de madeira.
Clara hesitou na entrada, observando a movimentação diante de si. Pratos nas mãos, sorrisos desconfiados e olhares curiosos se voltaram instantaneamente para ela e Katiany, que caminhava ao seu lado. A menina, claramente entediada, mantinha os fones de ouvido firmemente encaixados, os olhos grudados no celular como se tentasse desaparecer naquele ambiente barulhento e estranho.
— Vamos tentar parecer normais, pelo menos por uma hora? — Clara murmurou, com uma ponta de súplica na voz. — Você pode tirar os fones até irmos embora?
Katiany revirou os olhos, sem tirar o aparelho.
— Se você parar de me arrastar para esses lugares que cheiram a frango frito e conversa fiada, talvez eu consiga.
Clara respirou fundo, sentindo o peso daquela adaptação sobre seus ombros. O relacionamento entre elas ainda era frágil, marcado por hesitação e mágoas recentes. Ambas tentavam se acostumar com a nova vida, longe de um passado doloroso e sufocante. Clara sabia que Katiany carregava o medo do desconhecido: de não ser aceita na escola nova, de não encontrar amigos, de perder mais uma vez as poucas certezas que tinha. E ela própria sentia o medo de falhar como mãe e como profissional naquele recomeço tão necessário.
Do outro lado do salão, Roxana surgiu como uma presença teatral. Impecável em um vestido branco justo, salto fino e maquiagem perfeita, destoava completamente da simplicidade rústica do evento. Ela caminhou até Clara como quem desliza num palco, um sorriso largo — e claramente forçado — iluminando seu rosto bronzeado.
— Doutora Clara! Que surpresa agradável! Sou Roxana. — Ela abriu os braços como se fosse abraçá-la, mas seus olhos cintilavam com outra intenção. — Estava ansiosa para te conhecer. A cidade inteira já comenta sobre você.
Clara respondeu com um sorriso polido, mantendo a guarda alta.
— Bom te conhecer também. A cidade é... acolhedora.
— Nem sempre — disse Roxana, piscando com um ar de quem sabia segredos sórdidos. — Mas quem sobrevive ao primeiro mês, geralmente se adapta. Você já conheceu o Noah, certo?
— Sim. Estive na fazenda dele ontem. Um cavalo mancando.
Roxana inclinou a cabeça, farejando o ar como se detectasse algo interessante.
— Ah, os cavalos... Uma grande paixão do Noah. Depois do filho, é claro — disse ela, soltando uma risadinha maliciosa. — Mas ele é cabeça dura. Não é confiável. Espero que você não se frustre... muita gente já tentou ajudar aquele homem.
Clara endureceu o olhar, sentindo a velha chama da determinação acender-se dentro dela.
Clara sorriu, suave como quem entrega um presente embrulhado com fita de cetim.
— Oh, eu entendo... Mas não se preocupe, Roxana. — Ela inclinou levemente a cabeça, como quem faz um favor. — Eu vim para curar patas machucadas, não corações complicados. — E, com um leve sorriso no canto dos lábios, acrescentou: — Aliás, se o Noah for mesmo tão difícil quanto dizem, fico feliz em saber que ele já tem quem se dedique a essa parte.O sorriso de Roxana vacilou por um segundo, mas ela rapidamente se recompôs, bebendo um gole de chá gelado.
— Claro. Deve ser... libertador mudar de vida assim. Abandonar tudo, recomeçar... — comentou, a voz impregnada de veneno doce. — Nem todo mundo tem essa coragem.
— Nem todo mundo tem opção — rebateu Clara, sem hesitar. — Nem todo mundo precisa fingir.
Antes que a tensão pudesse crescer ainda mais, uma voz bem-humorada cortou o ar:
— Doutora! Veio salvar as galinhas da cidade também?
Era Enéas, trazendo uma bandeja de churrasco e um sorriso torto no rosto, o nariz levemente avermelhado, denunciando que já havia bebido algo mais forte do que café. Ao seu lado, uma senhora de cabelos grisalhos impecavelmente penteados sorriu com gentileza — Isabel, sua esposa.
— Depende — respondeu Clara, relaxando o ombro. — Se elas estiverem mais bem-humoradas que certas pessoas, eu topo.
Enéas soltou uma gargalhada franca.
Roxana, ao lado, cruzou os braços e lançou um olhar gelado para o grupo, tentando manter o controle da situação.
— Enéas, querido, ia te procurar mais tarde. Estou com um projeto novo e...
— Depois a gente conversa, Roxana — cortou ele com uma educação seca, voltando-se para Katiany. — Já comeu, mocinha?
— Ainda não — respondeu Katiany, envergonhada, aproximando-se mais da mãe.
— Venham. Vou mostrar qual torta aqui não parece feita com cola escolar.
Katiany deu uma risadinha contida e Clara, após um breve momento de hesitação, seguiu o casal simpático. Roxana ficou para trás, o olhar duro e os dedos esmagando o copo de plástico entre as mãos.
" Ela não vai durar aqui. E ele não vai se encantar por mais uma mulher cheia de problemas."
Roxana foi conversar com um homem alto do outro lado do salão, mas seus olhos amargos e calculistas nunca deixaram de seguir Clara.
Enquanto caminhava entre as mesas, Clara sentia o peso de olhares sussurrados e cochichos abafados. Algumas pessoas a cumprimentavam com simpatia tímida; outras a analisavam como se tentassem adivinhar seu passado apenas pelo jeito como ela andava. Era claro que ali, segredos tinham vida curta.
Foi então que ela o viu. Noah, de pé do outro lado do salão, rodeado por outros fazendeiros que o ouviam atentamente. Estava sem chapéu, os cabelos bagunçados pelo vento e o rosto marcado pelas intempéries da vida rural. O olhar dele encontrou o dela.
Num gesto espontâneo, Noah levou a mão até a cabeça, como se estivesse tirando um chapéu invisível, e a cumprimentou com um sorriso discreto.
O coração de Clara saltou no peito, traiçoeiramente.Antes que pudesse reagir, Enéas se aproximou novamente:
— Dra. Clara, deixa-me apresentar a Dona Marlene — disse, puxando uma mulher de origem mexicana, sorriso gentil e olhos calorosos. — Ela é professora da escola local e vai cuidar da adaptação da Katiany.
— Seja bem-vinda, Dra. Clara — disse Marlene, apertando sua mão com calor humano. — Espero que fiquem por muito tempo.
— Por favor, apenas Clara — respondeu, sorrindo, sentindo a primeira fagulha real de acolhimento.
Marlene se virou para Katiany, seu tom acolhedor:
— Querida, estamos te esperando na escola. Tenho filhas gêmeas da sua idade. Vocês vão se dar muito bem, tenho certeza.
Katiany sorriu de leve, algo tímido mas genuíno, e Clara agradeceu em silêncio.
Talvez, apenas talvez, aquele pedaço esquecido do Texas pudesse ser o recomeço de que tanto precisavam.Mais tarde, Noah se aproximou, trazendo notícias: o cavalo já corria pelo campo, sem sinais de dor.
— Obrigado, doutora — disse ele, num tom mais suave do que antes.
E, num gesto meio sem jeito, apresentou seu filho, Tyler, a Katiany.
O menino, de cabelos castanho-claros e olhos atentos, estava tímido, mas logo se soltou, trocando algumas palavras com Katiany. Ambos, sem saber, carregavam suas cicatrizes — e naquele primeiro contato, uma ponte silenciosa começou a se formar entre eles.O almoço beneficente terminou envolto em tensão contida, sorrisos sinceros e promessas silenciosas.
Clara sabia: o caminho à frente seria tudo, menos fácil.
Mas ela já não era feita de vidro — era feita de cicatrizes e coragem. Ali, entre desconfianças e desafios, não buscava aprovação nem aceitação. Buscava apenas o que merecia: um lugar para ser quem era. E, pela primeira vez em muito tempo, sentiu que não devia mais nada a ninguém.05