**Narrado por Clara**
Casa pequena, quintal grande, céu que muda de humor sem pedir licença. Minha infância foi marcada por cheiro de chuva forte batendo no telhado de amianto, panela chiando no fogão, rádio velho transmitindo notícias e uma mãe que costurava o mundo com linha e paciência. Meu pai? Um silêncio de homem bom, mãos de pedreiro, jeito de quem resolve as coisas sem palavras. Tínhamos pouco, mas tudo era nosso: o cachorro vira-lata, o pé de mexerica, a mesa marcada pela faca onde cortávamos bolo e fazíamos contas. Cresci entre duas certezas: amor firme e recursos escassos. Aprendi cedo a não pedir brinquedos caros, a inventar festas com o que tinha, a transformar o varal em tenda e o corredor em passarela. Minha mãe dizia que eu tinha “organização de secretária” muito antes de saber digitar sem olhar para o teclado. Cadernos organizados, etiquetas em potes, tarefas feitas com um capricho quase irritante. Ela ria de mim: “essa menina nasceu com uma agenda no sangue”. Eu ria de volta. Era a minha maneira de segurar o mundo com as duas mãos. Aos 14 anos, veio o primeiro sussurro do que eu ainda não sabia nomear. Começou no couro cabeludo, bem na linha do cabelo. Uma casquinha teimosa, ardendo como um sol malvado. “Deve ser shampoo”, opinou a vizinha. Troquei, mas não adiantou. A casquinha virou uma bolha frágil que estourou sozinha. Ardeu. Fingi que não era nada adolescente aprende cedo a atuar como invencível. Band-aid, franja mais baixa, risada alta. Ninguém vê o que a gente esconde bem. Depois apareceram pontinhos no rosto, nas laterais do peito, nos ombros. Vermelho vivo que dizia “não toque”. O banho virou uma negociação: água morna, quase fria, toalha encostando de leve, como quem pede licença. No começo, o posto de saúde disse que era “alergia”. Prescreveram pomada. Melhorou um pouco e depois piorou. A escola perguntou se “pegava”. Não pegava, mas a pergunta feriu mais do que as bolhas. Meu pai me levou a uma cidade maior, a um dermatologista com agenda cheia. Sala branca, cheiro de álcool e pressa. Ele explicou que seria necessário fazer uma biópsia. “Rapidinho”, disse. A agulha entrou na pele, levando um pedacinho meu para um potinho com tampa. Depois, fiz um exame de sangue com um nome comprido. Voltei para casa com um curativo pequeno e uma grande inquietação. O resultado chegou dobrado em papel ofício. A médica abriu, suspirou por trás da máscara. — É pênfigo foliáceo, Clara. Olhei para minha mãe. Ela apertou minha mão. Meu pai ficou com o queixo preso a um ponto qualquer do chão. — Não é contagioso . continuou a médica. —É autoimune. Seu corpo confunde uma proteína que mantém as células da pele unidas… chamada desmogleína-1… e começa a atacar. A camada mais superficial se separa. Por isso as bolhas, a ardência, as feridas rasas. Autoimune. Palavra elegante para dizer: “seu guardião ficou sem bússola”. Não havia vacina, nem chá milagroso, nem promessas fáceis. Havia tratamento corticoide, às vezes imunossupressor e vigilância. Uma nova rotina começava ali. Entrei no mundo da farmácia como quem entra em uma igreja: com silêncio e respeito. A prednisona me deu insônia, fome à noite e uma aparência que me deixou tímida. A azatioprina veio depois, com o barulho das coletas de sangue mensais, vigiando fígado e contagem de glóbulos. O armário do banheiro se tornou um kit de primeiros socorros: gaze, soro, pomadas, sabonete sem perfume. Aprendi a amar algodão. Aprendi que a etiqueta das roupas também arranha. Aprendi a abraçar sem esfolar. A escola continuou. Eu segui junto, com notas altas e estratégias de guerra: base de cobertura, blusa larga, cabelo preso quando necessário, preso em mim quando doía demais. Algumas pessoas desapareceram com medo de “pegar”. Outras ficaram. Uma professora me chamou de canto no corredor e disse, baixinho: “se quiser fazer prova na sala vazia, eu arrumo”. O amor não cura, mas alivia. Eu fui encontrando alívio nos intervalos. Em casa, meus pais revezavam a esperança. Minha mãe pesquisava tudo, imprimia artigos da internet, preparava comidas com menos sal por causa do corticoide, ia comigo ao posto de saúde, voltava orando. Meu pai vendia o que dava pra vender uma furadeira, um rádio antigo e dizia que não estava usando mesmo. Eles nunca colocaram minha doença sobre a mesa como uma dívida. Ofereceram carinho, e esse é o tipo mais precioso. No verão dos 17 anos, a situação piorou. Morávamos perto de um rio, que trazia mosquitos, brilho e poeira que grudava na pele suada. As lesões aumentaram. Tomei sol sem querer em um trajeto curto e me arrependi por três dias. A médica aumentou a dose. Prednisona por cima, coragem por dentro. Eu dava um jeito de seguir: festa de formatura com um forro de algodão sob o vestido, beijo tímido de um menino com gosto de refrigerante e medo meu, não dele de que a mão dele encontrasse uma área sensível. Ele não soube, e eu não contei. Naquela época, amar era um verbo que eu conjugava em sussurros. Conquistei a aprovação no curso técnico em Administração motivada pela necessidade de ser pragmática. Prometi a mim mesma que “a faculdade viria depois”. O pré-vestibular me proporcionou um emprego precoce em um escritório pequeno, com ventilador de teto e um chefe que desfilava pelos corredores com o barulho dos saltos. Eu apreciava a organização da agenda, o papel timbrado e a transformação do caos em planilhas. Quando o corpo sofre, ao menos a mente busca ordem. Aos 19 anos, decidi deixar a casa dos meus pais. Não se tratou de uma briga, mas de um amor que se mostrava exausto ao conviver no mesmo espaço. Observava o susto no olhar da minha mãe cada vez que a gaze saía com um leve fio de sangue e percebia a preocupação do meu pai questionando: “Está melhor?” como se quisesse saber se ainda poderia respirar. Não desejava que a doença dominasse todos os nossos momentos. Queria ser um sofrimento silencioso, ao menos a uma certa distância, para que eles pudessem jantar sem ter que encarar meu ombro marcado. Sentei à mesa, onde a faca estava à mostra, e falei de maneira simples, sem rodeios. — Mãe, pai… vou para a capital. Consegui uma vaga em um curso de secretariado e um estágio de meio período. Encontrarei um quartinho para alugar perto do metrô. Ficarei bem. Minha mãe mordeu os lábios e meu pai levou alguns segundos para reagir. — Você não precisa ir .disse ele. — Nós damos um jeito. — Eu preciso, pai. Não é por falta de amor, mas por excesso dele. Ele desviou o olhar para a janela. Minha mãe se tornava miúda e imensa ao mesmo tempo, chorando silenciosamente. Em seguida, levantou-se, pegou um pano e começou a limpar uma mesa que já estava limpa. Era a forma dela de me dizer “vai”, e eu fui. Levei três malas, um ventilador, uma caixa com medicamentos etiquetados, uma segunda caixa com cadernos e uma coragem que consegui reunir no último momento, entre a meia e o sutiã. O quarto alugado tinha mofo nos cantos e uma luz fria que me fazia parecer mais pálida do que realmente era. Abri a janela e fui recebida pelo barulho dos ônibus, o som de um vizinho tocando sertanejo e o aroma de pastel da feira. A cidade pulsava um futuro promissor. Constituí minha fortaleza de solidão: uma prateleira com gazes, uma lista na porta (“pomada? comprimido? água?”), um balde destinado apenas a lavar roupas de algodão, uma toalha macia e um espelho pequeno que não exigia que eu me visse por inteiro nos dias difíceis. E também estabeleci uma promessa: não resumir minha vida ao diagnóstico. Pela manhã, havia aulas. À tarde, o estágio. Corria com o sapato na mão, sabendo que a fricção é inimiga da pele, e pegava o metrô, encostando a bolsa contra o peito para evitar colisões. Aprendi rotas com menos escadas e menos cotoveladas. No trabalho, as pessoas passaram a me chamar de “a que resolve”. Calendários, atas, ligações desafiadoras, visitas de fornecedores e café na medida certa. Minha chefe dizia: “Você antecipa minhas necessidades sem precisar que eu mencione”. Sim, a observação é minha religião. Tive recaídas. A doença possui seu próprio humor, e a medicação também. Ajustes de dosagem, exames aos sábados, e uma expressão de lua cheia nos meses difíceis. Fotografava as lesões, registrava em planilhas e identificava os gatilhos: estresse, sol, perfumes fortes. Aprendi a dizer “não posso receber abraços apertados hoje” de maneira gentil, para não decepcionar aqueles que desejavam me acariciar, mas acabavam se tornando feridas. Conheci mulheres que enfrentavam suas próprias batalhas: endometriose, lúpus, depressão. Reconhecemo-nos por um tipo específico de cansaço nos olhos. Trocávamos dicas: “este sabonete não irrita”, “essa base não adere à gaze”. Ríamos de nós mesmas: “estou maravilhosa, só não encoste em mim”. Meus pais me visitavam a cada dois meses, trazendo sacolas de comida e carinho. Minha mãe observava minha cozinha organizada, sentindo um misto de orgulho e tristeza. Meu pai fingia não notar a caixinha de remédios. Almoçávamos em um restaurante barulhento, eu inventava histórias leves sobre o trabalho, enquanto eles compartilhavam relatos leves da rua. Quando se iam, eu arrumava a cama lentamente, como quem organiza lembranças para que não doam. A cidade me ensinou sobre vidro. Edifícios de fachadas brilhantes refletiam meu semblante apressado, tentando parecer inabalável. Aprendi a apreciar o vidro por seu caráter fragil e resistente ao mesmo tempo, belo e arriscado. Por meio dele, podemos ver e também nos esconder. Ele combina com a minha essência. No estágio, um cliente importante do setor de construção começou a adquirir o tempo da empresa para a qual trabalhava. Participava de reuniões em salas envidraçadas, lidava com contratos, rabiscava números em guardanapos, enquanto as pessoas falavam baixo para decidirem alto. Servia café com um sorriso neutro, anotando mentalmente o funcionamento do mundo impulsionado pelo dinheiro. Não era meu mundo. Ainda. Em uma dessas reuniões, ouvi um sobrenome que impunha respeito em todo o andar: Satamini. Não vi o rosto, mas percebi o efeito: a sala se tornava mais formal, as palavras ganhavam vigor, e as gravatas apertavam-se. Guardei o nome como quem armazena uma senha sem saber a que porta ela realmente dá acesso. Antes de qualquer Miguel, eu me tornei adulta por conta própria. Não por bravura, mas por uma questão de necessidade. Aprendi a me amar, utilizando curativos e batom, e a impor limites à dor e àqueles que invadem o meu espaço sem permissão. Optei por escolher lençóis macios em vez de justificar minhas escolhas. Aprendi a iluminar meu próprio caminho, mesmo nos dias em que minha pele desejava um pouco de sombra. Eu era e sou a mulher que decidiu não transformar os meus pais em espectadores da minha dor. Optei por ser um farol, uma fronteira. Carrego meu corpo comigo, com todas as suas batalhas e flores. Quando eu for amada, será com todas essas facetas à mostra. Se for na penumbra, será por minha escolha de descansar os olhos, não por necessidade de ocultar a pele. Esse foi o início. A criança que etiquetava potes se tornou a adulta que organiza o caos. A menina do rio se transformou na mulher do metrô. A jovem que aprendeu a cobrir feridas também aprendeu a não se envergonhar delas. E, sem perceber, já seguia em frente, passos leves, dor controlada, rímel firme enquanto caminhava em direção a um imenso edifício de vidro e aço, onde um homem que exerce influência no mundo ainda iria descobrir a diferença entre desejar na escuridão e amar sob a luz. Mas isso é algo que vem depois. Antes, eu estava aqui. E eu sou suficiente.