Prólogo (parte 2)

Nunes engoliu em seco, um arrepio subindo pela espinha, não pelo susto, mas pela violência do acerto.

— Eu só… olha, eu quero minha vida de volta. Quero terminar essa missão e… voltar pra casa. De volta pra Nova York. De volta pra ela… mas ela não me quer.

— Eu sinto que mudanças estão próximas… — ela cerrou os olhos, a posição mudando com uma lentidão calculada. Ela escorregou para o colo dele, a transição sutil, mas absoluta: — Eu acho que—

— Amor… não! — ele arregalou os olhos, as mãos tentando empurrá-la de leve, a testa franzida em desespero contido: — Tá cheio de gente olhando… isso é errado.

— Quer que eu saia? Toma a porra do seu Alprazolam — ela cruzou os braços, um movimento deliberadamente lento roçando contra sua cintura. Era errado demais para dar prazer; e justamente por isso dava prazer: — Você fez aquilo com ela, Nunes. Ela tá fria por culpa sua, e você sente saudades dela.

A trilha sonora da nave, uma música antiga de baixa qualidade — cheia de ecos metálicos e sintetizadores rasgados — se misturava ao ritmo dos passos de salto alto das duas astrônomas que atravessavam o corredor, discutindo a dilatação do buraco negro.

— Você sabe... e tudo vai chacoalhar de novo.

— Outra vez? — ele murmurou, os olhos fechando em rendição, conforme a velocidade da intimidade aumentava.

— Quem sabe DESSA VEZ seja diferente, não? — Nevaska riu, agora as mãos nas costas de Nunes, as unhas afundando na carne como garras: — Me diz.

Ele arfou, um gemido involuntário escapando por entre os dentes.

— Merda… o quê?

— Você lembra dela?

— …Da Ketlen?

Imediatamente, a conversa das mulheres se interrompeu. As duas viraram a cabeça em uníssono, os rostos perfeitamente alinhados, e os olhos delas prenderam-se em Nunes por um segundo que se esticou, frio e rígido. Não era curiosidade, era uma análise silenciosa, quase cirúrgica, como se estivessem catalogando um objeto defeituoso.

Nevaska nem piscou… o silêncio se estendendo demais.

— Você disse que sonhou com ela, certo? — ela virou o rosto, como se estudasse cada movimento dele com precisão absurda.

— Isso… — ele riu, nervoso e desgrenhado: — Desde que entrei nessa nave, sabe? A missão inteira eu ando tendo pesadelos horríveis, tipo paralisia do sono. Sempre é a mesma garota, como se eu lembrasse dela há séculos… uma intimidade que transcende tudo. Sei lá.

Ele esperou, mas a resposta não veio. As astrônomas do corredor retomaram a caminhada, a discussão sobre física recomeçando no mesmo ponto em que parara, sem sequer piscar, como se nada tivesse acontecido.

— E… — ele continuou, como se devesse mais palavras à explicação: — Desde que a Laura terminou comigo… e você surgiu… tudo tem ficado uma bagunça, sabe? Essa Ketlen aparece nos sonhos e… é tão real. Às vezes nos beijamos. Ou casamos. Ou andamos de mãos dadas em uma praia à noite. É tão real que chega a doer.

— …Certo — Nevaska assentiu, sorrindo com os lábios: — Sabe… eu vou dar tempo pra você. Acho que…

Ela riu, uma risada infantil que contrastava com a situação perturbadora. Ela se aproximou, e seus lábios tocaram os de Nunes, mas não era um beijo. Foi uma impressão etérea, um toque que não tinha calor nem peso. Ele o sentiu como um sussurro contra a pele, um fragmento de lembrança que ele já conhecia, mas que não se concretizava.

— Depois desse beijinho, você dorme bem, né?

— É… claro — ele assentiu freneticamente: — Sim, sim… deixa eu quietinho, quando acordar eu… a gente se fala de novo. Pode ser?

— Claro — ela se levantou do colo de Nunes, o olhar ainda travesso, e sussurrou: — Mas eu percebi que gostou. Ficou todo durinho comigo em cima de você, policial.

Ela sorriu, mordendo os lábios enquanto se afastava — Nunes ficou, o rosto vermelho em vergonha, já se deitando no sofá, completamente entregue ao cansaço.

Não era Nevaska — Nunes sabia que ela era um delírio do trauma do término por áudio.

“Caralho, espero que esse assunto de ex-namorada e Ketlen não me dê pesadelos de novo.” — ele refletiu, a testa se franzindo.

O policial afundou ainda mais no sofá — um prêmio pela ousadia daquela travessia impossível. Cores refletidas criavam espectros pelo chão polido, reluzindo nos olhos cansados dos cientistas. Aquele feito era mais que uma conquista científica — era uma afronta ao próprio tecido do universo. Atravessaram um buraco de minhoca escondido atrás de Marte, uma fenda esquecida que ligava o quintal solar ao centro da galáxia de Andrômeda.

“Eu ainda lembro do seu cheiro, Laura. Às vezes em detalhes. Você ainda lembra do meu?”

Cada fibra se moldava ao corpo, como se tivesse sido esculpida em silêncio para receber cada suspiro seu, macia e precisa como um segredo tecnológico caro demais para existir fora daquela missão.

“Se eu sonhar com ela me olhando daquele jeito de novo… eu fico maluco!” — ele sorriu, mordendo os lábios.

Ao fundo, os cochichos dos programadores se tornavam música: uma dupla discutia em tom baixo sobre Python e Lua, outra comparava algoritmos em línguas diferentes — e aquele mosaico de vozes, cadenciado e difuso, embalava sua mente como uma estranha canção de ninar em meio ao abismo das estrelas…

NUNES…

Mas, em meio àquele coro difuso, havia algo que não pertencia. Um som abafado, quase agonizante. Como um arranhar metálico perdido na parede distante da nave. Nunes prendeu a respiração por um instante, certo de estar ouvindo errado. Ainda assim, não foi só o arranhar: havia também uma voz. Baixa, arrastada, que parecia chamá-lo. Não só pelo nome — mas por algo mais íntimo, mais profundo.

VEM SONHAR COMIGO…

A paranoia se apertou, e Nunes sentiu um frio gélido percorrer seu corpo, não por causa da temperatura da nave, mas pela certeza inexplicável de que não estava sozinho em sua própria cabeça.

“É ela… porra.”

No fundo, rezava para não sonhar com ela de novo. Não daquele jeito. Não pelada, no quarto dele… mas a voz, abafada e arranhada, parecia sussurrar que ele já não tinha escolha.

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