Capítulo 1

*TRRRIM-TRRRIM!*

“Ah… merda.” — Nunes levantou o rosto do chão. O ambiente estava escuro, a baba acumulada nas bochechas, “Eu apaguei?”

Cozinha. Apenas o tic-tac do relógio ao fundo.

25 de setembro de 2027 — um dia antes da missão.

3:30 da manhã, Nova York, cobertura de um prédio.

O tic-tac marcava o tempo — constante, robótico, previsível. Mas havia algo errado na repetição: como se cada batida viesse levemente atrasada, ou adiantada. O som não acompanhava o mundo real. Era um metrônomo de pesadelo, avisando que o sonho já estava condenado a pegar fogo.

*TRRRIM-TRRRIM!*

— Merda, o Alprazolam me derrubou feio.

Ele se levantou, o barulho do telefone fixo sendo sua única fonte de direção em meio ao escuro.

*TRRRIM-TRRRIM!*

E atendeu.

— Alô...? — Nunes franziu o cenho.

... Nada.

Apenas estática.

Alô… — a voz veio da escuridão.

— AH! — Nunes se virou, os olhos percorrendo a cozinha: — QUEM?!

Ele sentiu, as mãos subindo pela cintura, agora levemente roçando seu pescoço. Aquela delicadeza mortal de quem esmaga um passarinho com o pé, apenas para ouvir o estalo.

— Ketlen…?

Eu tô aqui… tá tudo bem… — ela sussurrou, lambendo a parte de trás do seu pescoço, fazendo-o arquear: — Eu preciso da sua ajuda, Nunes. De novo.

A língua percorreu o pescoço dele — quente, áspera, quase animal. Um arrepio subiu em choque pela coluna, errado demais para ser prazer… e justamente por isso era prazer.

— Q-que ajuda? — ele gemeu, o corpo falhando: — Fala, meu amor…

Escolhe um número. Desses do telefone — quase inaudível: — Por mim, vai…

O sussurro vinha macio, roçando a orelha como quem prometia segredos noturnos. Mas algo falhava nos detalhes: uma cadência quebrada, uma vogal alongada demais. Como se fosse humano… mas só na superfície.

Ele franziu o cenho, confuso, o olhar agora fitando a tela do telefone.

“Chamada recebida: ESCOLHA UM NÚMERO

— Pra que isso, meu bem?

Isso… vai agilizar TANTO as coisas… você nem imagina

— Que coisas? — ele fechou os olhos, enquanto ela roçava a cintura contra ele: — Ah… é que dessa vez não tá fazendo sentido.

Clica… escolhe.

A curva da cintura dela roçava na dele num gesto lento, possessivo. O calor era humano, mas o ritmo — irregular, desequilibrado — traía a imitação. Como dançar com um corpo vivo e um eco morto ao mesmo tempo.

— Mas… — Nunes parou de repente, os olhos arregalando: — Espera aí…

Escolhe, amor…! — o rugido veio úmido, primal, e as unhas se afundaram em sua carne.

A dor e o desejo se misturaram, pulsando no mesmo ponto. Era intimidade, mas distorcida — como se o amor tivesse dentes.

Escolhe, desgraçado!!! — o hálito bateu no rosto dele: carregado de uma ferrugem fria, como se um cadáver tivesse ensaiado sedução.

— FILHA DA PUTA! — ele se virou: — Você…?!

Ela não estava mais lá. O peppermint invadiu o ar, doce e carregado de memória. Nada de formas, nada de fumaça, apenas o cheiro de saudade e pecado, daqueles que não existem fora dos pesadelos mais íntimos. Daqueles que nunca somem. Viciante.

Apenas a certeza de um desaparecimento.

— Eu quero ver ela… de novo — Nunes fechou os olhos, as lágrimas caindo em um ritmo de histeria: — Por favor… eu quero ver a Ketlen de verdade…

Por um segundo… o tic-tac do relógio parou, o cheiro do peppermint sumiu.

Quando ele abriu os olhos… estava de volta no quarto escuro dela.

Nunes conseguiu enxergá-la, estava sentada em posição fetal no chão, um pote de Rivotril mais à frente. Completamente diferente — agora vestia um pijama simples.

— Ketlen?! — Nunes gritou.

Ela olhou para ele, o rosto desfigurado de tanto chorar, nariz escorrendo catarro. Era desconfortável. Real demais. Humano demais.

E doía vê-la assim — como se houvesse uma preocupação sincera e inadiável por seu sofrimento, uma empatia que crescia dentro da apatia dele, como uma flor que está morrendo, mas é salva por um beija-flor.

Era como se... algo além do tempo, além da lógica, sussurrasse que aquela dor compartilhada já lhe pertencia.

E foi nesse instante que ele entendeu.

Não era apenas a dor dela que o atingia.

Era o choque de ver alguém tão despedaçada…

e, ainda assim, sentir vontade de se aproximar.

A vergonha veio primeiro — um nó no peito.

Como se desejar fosse uma ofensa diante das lágrimas dela.

Mas logo nasceu outra urgência.

Não de possuir.

Mas de proteger.

De estar junto.

De carregar, nem que fosse por um instante, um pedaço daquela dor.

Não era a primeira vez que via aqueles olhos — era a primeira vez que os sentia.

Antes, nos outros loopings, os olhos que encontrou eram dela, lindos, mas vazios, distorcidos...

Pareciam lembrar os dela, mas não eram ela. Eram uma versão quebrada.

Mas agora... era ela. Em toda sua dor. Em toda sua falha.

E mesmo assim... ou justamente por isso... ele sentiu algo novo. Algo quente. Inexplicável. Tão humano quanto ela. Algo que não deveria estar ali, mas estava. E que crescia.

Como os campos de papoula na Primeira Guerra Mundial.

— Por que você aparece pra mim nos meus sonhos? — ele sussurrou, com a voz arrastada, quase infantil.

Como explicar que sentia algo por alguém que, teoricamente, ainda não conhecia?

Como explicar que ao vê-la, queria abraçá-la, protegê-la, mesmo que fosse ela quem tivesse aparecido nua no seu próprio quarto sem explicação alguma?

Como explicar que sua dor era mais dele do que dela?

Era um paradoxo. Como o tempo que dobra sobre si mesmo e forma um laço de Möbius — onde o dentro e o fora se tornam um só, e não há mais lado certo da superfície.

Ela era a flor, e ele o beija-flor.

Mas também era o contrário.

Porque em alguma dobra impossível do destino, ele já tinha a amado. E ela já o tinha perdido.

Eles não estavam se conhecendo — estavam se reencontrando num ponto quebrado do espaço-tempo.

Como duas partículas entrelaçadas, separadas por anos-luz, mas ainda assim sentindo uma à outra.

Como uma singularidade emocional, onde todas as certezas colapsam num único sentimento impossível de nomear.

E ali, naquele quarto escuro, com uma luz vermelha pulsando no fundo da realidade, ele sentiu a primeira rachadura em sua depressão.

Porque ela não era só uma garota chorando no chão.

Ela era... o amanhã que sangra dentro do hoje.

E ele... o presente que ainda não aprendeu a amá-la como o passado exigia.

NUNES!

O mundo tremeu.

Como se fosse o olho de um furacão prestes a se fechar.

O calor queimava, mas o frio gelava por dentro.

NUNES, ACORDA!

Ele respirou fundo.

Mais uma vez.

Ainda estava preso no pesadelo…

O paradoxo ecoava em camadas.

Como um fractal se repetindo.

Como uma serpente devorando a própria cauda.

Só que a cauda nunca sumia.

Porque a mordida também era ilusória.

Espelhos refletindo espelhos.

Cada imagem mais distante da realidade.

Até que “realidade” fosse só palavra vazia.

Símbolo sem referente.

ACORDA!!!

Até que algo o puxou de volta.

Uma cutucada.

Pequena, mas definitiva.

— NUNES! — Rúi gritou, cutucando-o com mais força no sofá.

AAAHH!! — Nunes arfou, se sentando rapidamente. O peito subia e descia, ofegante: — KETLEN?! KEEEETLEN!!!

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