Capítulo 1 (parte 2)

O grito cortou o ar da cabine, não como um som normal, mas como uma sirene de emergência. Dezenas de pares de olhos se voltaram para Nunes, mas o que mais o atingiu não foi o olhar em si, e sim a quietude instantânea que se seguiu. Ninguém se moveu, ninguém tossiu, ninguém voltou a teclar. Eles o encaravam, não com preocupação, mas com a impassibilidade fria e absoluta de quem observa um animal no zoológico, ou talvez, um objeto de estudo que está se comportando de forma previsível e indesejada.

— Ou! Calma, cara! — Rúi riu, nervoso, todos da nave encarando os dois: — Você tava gemendo altão o nome da mina, de novo!

Nunes mordeu o próprio lábio, as lágrimas saindo.

Era ele — o amigo que Nunes nunca teve — e por isso insistia existir.

— Desculpa… q-que nome eu tava gritando? O da Nevaska?

Rúi piscou, confuso.

— Nevaska?! — ele arqueou uma sobrancelha: — Não tem mulher na nossa tripulação não, irmão.

O coração de Nunes parou de pulsar por meio segundo, um vento gélido passando pelo estômago.

“Como assim não haviam mulheres?”

— É o nome da tua ex? — Rúi franziu o cenho: — Tu me disse sobre ela, né? A Laura… que terminou com você por áudio… você me contou que ela cheirava a essência de algodão e não sei o quê…

Nunes arregalou os olhos, o peito voltando a subir e descer.

— Ketlen… — ele gemeu, a voz embargada: — Eu… merda, Rúi. Não é sobre Laura e nem Nevaska. É sobre a Ketlen. É ela que eu quero. É ela que me quer. Só que eu…

A reação coletiva era palpável. Nunes sentiu a pressão daquele silêncio opressor apertar em sua caixa torácica. O murmúrio que havia voltado rapidamente se extinguia assim que ele falava. O ambiente estava imerso em uma estranheza controlada; era evidente que todos ali estavam habituados a vê-lo falando sozinho, e essa aceitação silenciosa e contínua era muito pior do que qualquer confrontação. Eles não o viam como alguém triste ou com medo, mas como um defeito na tapeçaria da nave, algo quebrado que continuava a fazer barulho.

— Nuuunes! — Rúi riu, a mão balançando o ombro de Nunes: — Já deu! Foi pesadelo, porra… — ele sussurrou, só pra ele ouvir: — Tá todo mundo te olhando. Você bateu recorde de grito. E com direito a choro de novela!

— Eu… — ele fechou os olhos com força, as lembranças chegando de forma dolorosa: — Ela me disse que odeia que as pessoas chamem ela de maluca e a tratem como. Foi o ex que causou isso nela. Mas eu também odeio isso… por causa da minha ex.

— Nuuuunes! — Rúi riu, batendo palmas: — Acabou! Chega…

— Foi mal… — Nunes olhou ao redor, respirando fundo, os olhos fechados em frustração: — Desculpa mesmo… Já cochilei uma hora pelo menos?

— Duas horinhas — ele riu, mas a voz suavizou: — Vamos acordar…?

Nunes observou os rostos ao seu redor. Ninguém esboçava um sorriso ou um aceno de compreensão. Eram máscaras de indiferença polida, e ele sabia que, na cabeça de cada um, todos se perguntavam se ele tinha dormido o suficiente. Aquele era o efeito Elias: a prova constante de sua realidade paralela e inaudível. A mente dele estava tão acostumada a essa dicotomia que a linha entre o que era real e o que era a "interferência" de Nevaska e Rúi estava começando a esmaecer.

— V-vamo… — Nunes franziu a testa, tirando as mãos de Rúi do seu ombro.

— Tem uma coisa. E querem tua opinião nessa coisa também.

— Que coisa, cara? — ele finalmente se levantou, torcendo a coluna para trás, o estalo saindo alto: — Porra, não tem paz nessa nave não? É sempre eu que preciso resolver tudo pros outros.

Dezenas de tripulantes estavam em volta dos computadores principais. Alguns com braços cruzados, sérios, outros murmurando coisas inaudíveis.

— Você tava dormindo igual uma princesa que toma bomba, não queria atrapalhar! — ele deu uma sequência de tapinhas no rosto de Nunes: — A gente tá detectando uma nave a caminho daqui — ele parou, sorrindo: — E tipo, o Franco tá falando uma fita mó errada que pode ser os insurgentes, e me deixou com medo pra caralho.

— Os insurgentes?! — Nunes arregalou os olhos: — Os desgraçados que lutam contra a gente?

— Exatamente, Cinderela Baiana. Tu sabe muito de modelo de naves, então vê lá os dados e fala pra gente. Meche essas pernas aí, bora fazer um cardio rápido até ali.

… Ele respirou fundo, coçando os olhos.

— Tá... bora lá.

Nunes caminhou ao lado de Rúi, os cochichos sobre a fofoca maiores.

— Qual a outra especulação? — Nunes perguntou, a voz ainda rouca.

— Pode ser asteroide, mas a velocidade não b**e. Se fosse ele iria atingir essa lua aquática aí do lado da nossa nave, a Elias IIIa, mas creio que não seja isso.

— Quantos quilômetros esse tal objeto tá andando?

— Três ponto cinco milhões — Rúi disse como se pedisse pão.

Nunes parou. E, na mesma fração de segundo, a mulher ao lado que cochichava com outro colega também parou, encarando-o. O movimento foi perfeitamente sincronizado, estranhamente robótico.

— TRÊS PONTO CINCO?!

… Silêncio.

O Efeito Elias novamente. A colega, antes absorta em sua fofoca, agora tinha o rosto vazio de expressão, os olhos fixos em Nunes como se ele fosse a origem de um ruído de baixa frequência que só ela conseguia detectar. Ela nem sequer se moveu para retomar a conversa.

— É… — Rúi olhou para os lados, a atenção toda voltada para os dois, agora quase inaudível: — Foi isso que o Franco falou…

— Franco! — Nunes o chamou, alto para ele ouvir.

A mulher piscou, uma única vez, e seu colega ao lado deu um passo para trás, sutilmente, mantendo a distância. Não precisava chamar Franco, ele já estava prestando atenção. Todos estavam. O silêncio da cabine, mais do que qualquer grito, provava que, na mente de todos, Nunes tinha acabado de reagir com pânico a uma informação que ele mesmo acabara de inventar.

— Que foi? — Franco respondeu.

— Que porra é essa? — Nunes riu, tentando aliviar a tensão: — Me mostra os dados aí, vai.

— Beleza, senta aqui… — Franco deu um tapinha no ombro do colega ao lado, que já se levantou para ceder o banco de plástico.

Nunes agradeceu com um aceno e se acomodou no plástico frio, ajeitando a postura.

— O Rúi falou que você disse que eram insurgentes. É isso mesmo?

— Rúi? — Franco franziu a testa, mas logo arregalou os olhos, como quem lembra de algo: — Ah… claro… claro. Exato. Aqui consta que o objeto foi detectado a três ponto cinco milhões de quilômetros por hora. O sistema estimou cinco horas pra chegar até a gente.

— …Dezessete ponto cinco milhões de quilômetros de distância? — Nunes arqueou uma sobrancelha, a mente trabalhando rápido.

— Exato.

Rúi chegou, recostando as mãos nos ombros de Nunes.

— E você, grandão?! Ficaria com uma insurgente se tivesse a chance?

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