Mundo ficciónIniciar sesión
Lorena
O reflexo no espelho me encarava com uma frieza que me dava arrepios.
Ali estava eu, prestes a subir ao palco para mais uma apresentação. Os cabelos perfeitamente alinhados, o batom vermelho desenhando um sorriso que não existia, o rímel disfarçando o cansaço nos olhos — e o vestido preto, longo, impecável, como uma armadura.Por fora, eu era a imagem da perfeição. Por dentro, só havia silêncio.Desde criança, fui moldada para isso — para ser a menina exemplar, a filha dócil, a pianista impecável.
Meu pai dizia que perfeição era o mínimo aceitável. Um erro de nota, um passo em falso, e o castigo vinha. Dois dias de cama, o corpo latejando e a alma se escondendo onde a dor não alcançava. A música era o meu esconderijo. O som das teclas, o único lugar onde eu podia respirar sem medo.Minha mãe morreu quando eu tinha dois anos.
Não há quase nenhuma foto dela pela casa — como se nunca tivesse existido.Meu pai nunca fala sobre ela, e com o tempo, aprendi a não perguntar.Fui criada sob regras, não sob abraços.As ordens vinham como rajadas: “faça isso”, “endireite-se”, “não chore”.Eu cresci sem saber o que era colo, sem saber o que era amor.Hoje, adulta, continuo vivendo a vida que ele planejou.
Trabalho, mas o dinheiro não é meu. Tenho talento, mas ele pertence a ele.Não tenho liberdade, nem coragem o bastante para buscá-la.Há dias em que penso que talvez seja fraqueza. Outros, que é medo.Mas, no fundo, acho que é cansaço.Cansaço de apanhar, de ouvir gritos, de me olhar no espelho e não me reconhecer.Respirei fundo.
A pianista Lorena Almeida precisava estar perfeita.A mulher por trás dela podia continuar despedaçada, desde que ninguém percebesse.Ouvi os passos dele se aproximando atrás de mim.
— Você está linda, filha — disse meu pai, a voz grave e calculada.— Obrigada — respondi, sem desviar o olhar do espelho.— Já sabe o que precisa fazer, não é? Plena atenção, sorriso no rosto e o mais importante: Felipe Andrade precisa se interessar por você. — As palavras dele saíram como uma sentença.
— Pai… ele é um empresário ocupado, vive cercado de gente. É só uma apresentação, talvez nem repare em mim.— Não interessa. Faça sua parte. E faça bem feito. — A mão dele apertou meu braço com força, como se quisesse me lembrar quem mandava.Pegou minha bolsa e me puxou pelo corredor.
Meu pai tinha dinheiro, mas nunca foi o bastante.Ambição era o alimento que o mantinha vivo — e, dessa vez, o nome desse alimento era Felipe Andrade.Eu sabia quem era ele.
O jovem empresário que herdou o império da família e multiplicou os lucros em poucos anos.Trinta anos, discreto, raramente visto com alguém.A mídia o descrevia como frio, brilhante, inalcançável.Meu pai o descrevia como a oportunidade perfeita.Não sei como conseguiu, mas deu um jeito de me colocar naquela noite no evento da empresa dele.
Uma apresentação de uma hora, com intervalos.A missão era simples: tocar lindamente, impressionar e chamar a atenção de Felipe Andrade.Segundo meu pai, eu tinha as qualidades certas — beleza, talento e uma aparência que vendia confiança.
Mas por dentro, eu só sentia medo.Medo de errar.
Medo de decepcionar.Medo de que, mais uma vez, a dor voltasse a ser minha única companhia.E talvez o que mais doesse fosse saber que, mesmo tentando me convencer de que aquilo era apenas mais um trabalho, eu estava prestes a subir ao palco e vender, mais uma vez, a única coisa que ainda me restava: minha própria paz.
Enquanto o carro percorria a cidade, eu observava as luzes passando pela janela como faíscas de um sonho distante.
Os prédios refletiam o brilho frio da noite e, entre um semáforo e outro, eu me perguntava o que aconteceria se aquele homem — Felipe Andrade — simplesmente não olhasse para mim.No fundo, eu desejava exatamente isso.Que ele não me notasse.Que tudo acabasse rápido, sem que eu precisasse ser usada como moeda de troca.Mas desejar alguma coisa nunca teve peso na casa onde cresci.
Quando chegamos ao evento, ajeitei o vestido e caminhei ao lado do meu pai, passos curtos, controlados, medidos.
Postura ereta, sorriso gentil, olhar firme.A pianista perfeita precisava entrar em cena — e a mulher por trás dela não podia existir.Algumas pessoas me cumprimentaram, e respondi com a polidez automática de quem aprendeu a fingir desde cedo.
Fui direto ao piano, o único lugar onde me sentia segura.As teclas eram a minha fronteira, o espaço onde eu podia existir sem ser punida.E então, eu o vi.
Felipe.Ele entrou acompanhado de outros homens, a postura impecável, o olhar confiante.
Era ainda mais bonito do que nas manchetes.Tinha algo sereno e ao mesmo tempo autoritário na forma como se movia, como se o mundo se ajustasse à presença dele.Por um segundo, senti o ar escapar dos meus pulmões.O evento começou, e eu me sentei.
O silêncio da plateia me envolveu — aquele silêncio antes da primeira nota, o único que eu realmente conhecia.Meus dedos tocaram o piano com a precisão que o medo ensinou.Não podia errar.Nada podia sair do lugar.Toquei duas músicas em sequência, depois improvisei melodias suaves enquanto observava o movimento ao redor.
Entre um acorde e outro, meus olhos voltavam a Felipe.Ele conversava, sorria discretamente, e jamais olhou em minha direção.Talvez fosse melhor assim.Talvez aquele fosse o destino mais gentil que eu poderia ter.Quando me dei conta, o tempo tinha passado.
Toquei a última música com o coração acelerado, e ao ouvir os aplausos, curvei-me em agradecimento.Aquele som — o som das palmas — era o mais próximo que eu já chegara de aprovação.Levantei-me para respirar um pouco, caminhei até uma das laterais da sala, e então senti meu braço ser puxado.
O toque familiar, firme, que fazia meu estômago se revirar.— Não esqueça o que combinamos em casa — disse meu pai, baixo e ríspido.
— Nós não combinamos nada, papai. — Tentei manter a voz firme. — E além disso, ele nem chegou perto do piano a noite toda. Não tem como eu me aproximar. Por que o senhor quer tanto isso?— Não interessa. Apenas faça. — Os olhos dele me atravessaram como lâminas.Quando ele se afastou, soltei o ar preso no peito.
Respirar parecia um luxo.Foi quando ouvi uma voz atrás de mim:
— Parabéns pela apresentação.Virei-me e lá estava ele — Felipe Andrade.
Por um instante, achei que fosse imaginação.
O som da voz dele era diferente do que eu esperava: suave, segura, quase cálida.Meu coração disparou, e antes que eu pudesse reagir, percebi o olhar do meu pai em algum canto da sala, observando tudo.— Obrigada — respondi, tentando disfarçar o nervosismo.
Ele perguntou se eu tocava apenas em eventos corporativos ou se fazia apresentações em outros eventos também.
Minha resposta saiu automática:— Trabalho principalmente com empresas e casamentos.Mentira pela metade.
Eu tocava onde meu pai mandava, e não tinha o direito de escolher.Mas Felipe sorriu.
E naquele sorriso, algo dentro de mim se partiu — e ao mesmo tempo se acendeu.Era o primeiro sorriso verdadeiro que eu via em muito tempo, e, sem perceber, sorri de volta.Um sorriso de verdade, desses que não precisam de permissão.Ele falou sobre música, sobre o quanto admirava quem conseguia transformar sentimentos em sons.
Conversamos por alguns minutos, e cada palavra dele parecia afastar o peso do mundo — só um pouco, mas o bastante para que eu me lembrasse do que era respirar sem medo.— Bom, espero ter a oportunidade de ver mais apresentações suas — disse ele, antes de se afastar.
Fiquei parada, observando-o ir embora, com o coração descompassado e as mãos ainda trêmulas.
Naquela noite, pela primeira vez em muitos anos, o som que ecoava dentro de mim não era o do medo.






