Mundo ficciónIniciar sesiónLorena
A volta para casa foi uma tortura silenciosa interrompida por perguntas.
Meu pai falava sem parar, como se cada palavra fosse um comando.Queria saber o que havíamos conversado, se Felipe havia pedido meu telefone, se tínhamos combinado de nos ver novamente.Eu respondia o mínimo, escolhendo as palavras com cuidado — qualquer deslize poderia custar caro.Em certo momento, ele lançou um olhar desconfiado, esperando algo que eu não podia oferecer.
No fundo, pensei em mentir. Quis dizer que Felipe era comprometido, que nada aconteceria entre nós. Mas meu pai provavelmente já sabia que não era verdade. Ele sempre sabia. E mentir para ele só piorava as coisas.Quando chegamos em casa, subi direto para o quarto.
Fechei a porta, respirei fundo e senti o corpo inteiro doer, como se a tensão da noite tivesse se acumulado em cada músculo.Tirei o vestido devagar, como quem se desfaz de uma pele que não pertence.No espelho, a marca arroxeada nas minhas costas parecia gritar.Toquei o hematoma com os dedos trêmulos.
A dor era física, mas também era lembrança — um lembrete cruel do que acontecia quando eu “fracassava”.Naquela noite que ganhei aquele hematoma, o motivo fora banal: eu não havia sido “simpática o bastante” com o dono do hotel onde toquei na semana anterior.E, para meu pai, isso era imperdoável.Ele dizia que cada erro merecia uma lembrança. E as minhas estavam todas ali, no corpo, em tons de roxo, azul e medo.Entrei no chuveiro, deixei a água quente escorrer pelos ombros e tentei lavar a culpa, a vergonha, o nojo.
Mas algumas coisas não saem com água.Depois, vesti o roupão, sentei na beira da cama e olhei pela janela.
O céu estava limpo, pontilhado de estrelas — um contraste cruel com o caos dentro de mim.Eu me perguntava como teria sido a vida se minha mãe estivesse viva.Será que ela me trataria assim também?Ou será que teria me abraçado quando eu chorava escondida no banheiro?Talvez me amasse. Talvez me protegesse.
Mas “talvez” era uma palavra perigosa demais para quem vive sob ordens.E se eu fugisse?
A ideia atravessou minha mente como um raio — brilhante e impossível.Eu não tinha dinheiro, não tinha amigos que pudessem me esconder.Tudo o que eu ganhava passava pelas mãos dele.E se eu tentasse pedir ajuda, se alguém soubesse, ele descobriria.Ele sempre descobria.Encostei a testa no vidro frio da janela e fechei os olhos.
No reflexo, vi uma mulher que parecia comigo, mas não era eu.Era a sombra da filha perfeita, da pianista exemplar, da mulher treinada para obedecer.E, ainda assim, havia algo dentro daquela sombra — um resto de esperança, uma centelha minúscula que insistia em sobreviver.
Talvez fosse a lembrança do sorriso de Felipe.Talvez fosse apenas o desejo desesperado de um dia não precisar ter medo.[...]
Laila era minha melhor amiga.
Nos conhecemos ainda na infância, quando estudávamos piano com a mesma professora.Crescemos lado a lado, dividindo partituras, sonhos e confidências. Fizemos faculdade de música juntas, mas, ao contrário de mim, ela teve escolha.Decidiu seguir o caminho do pai, trabalhar na empresa da família e deixar a música como um hobby de fim de semana.Ela era bonita, inteligente, doce — e uma das poucas pessoas que meu pai “permitia” que eu tivesse por perto.
Afinal, a família dela era rica, influente, e, para ele, nossa amizade era mais uma forma de se manter bem relacionado.Nunca foi sobre mim. Era sempre sobre o que eu podia representar.— Lorena, quero te contratar para uma apresentação da empresa — disse ela, certa tarde, com o entusiasmo de quem fala de algo leve.
— Apresentação da sua empresa? — perguntei, sem entender muito bem.— Sim! Meu pai adorou a ideia, e minha mãe também. Você sabe que ela te adora, né? Aceita, vai. Sorri. — Claro que aceito. Não tem nem como recusar.— Ótimo! Tenho certeza de que todos vão amar.Quando contei ao meu pai, o brilho nos olhos dele me fez gelar por dentro.
Era um evento grande, com empresários importantes, uma vitrine perfeita para ele exibir a filha como um troféu, o exemplo da “família ideal”.E, no fundo, eu sabia — ele esperava que aquela fosse mais uma oportunidade de me usar.Passei a semana mergulhada na preparação.
Escolhi cada música a dedo, ensaiei até as mãos doerem.Laila confiava em mim, e eu não podia decepcioná-la — mas, acima de tudo, não podia errar.Um erro significaria dor. E eu já tinha marcas demais.Na noite do evento, vesti um longo vestido vermelho, deixei os cabelos soltos e me maquiei com cuidado.
Meu pai me observava da porta, com aquele olhar clínico que parecia avaliar cada centímetro do meu corpo.— Já sabe, tudo precisa ser perfeito — disse ele, enquanto ajeitava o terno. — A propósito, percebi que você engordou. A partir de amanhã, um mês de dieta. Só o caldo.
— Pai, eu não engordei, estou no mesmo peso de sempre.— Não discuta comigo, Lorena.Engoli em seco.
Para ele, um corpo “acima do peso” era um corpo imperfeito — e uma filha imperfeita merecia punição.A perfeição era o único idioma que ele entendia.O salão estava cheio quando chegamos. As luzes refletiam nos lustres e o som das conversas criava uma melodia de fundo.
— Lorena, você está linda! — disse Laila, me abraçando. — O piano está ali, providenciei tudo o que pediu. Aproveite.Sorri com gratidão. Ela não fazia ideia do que significava “aproveitar” na minha vida.Caminhei lentamente até o piano.
Cada passo era um ensaio de controle.Sentei, ajeitei as partituras e esperei o anúncio de abertura.Assim que as luzes se voltaram para mim, respirei fundo.E toquei.
Cada nota era uma confissão.
Cada acorde, um grito disfarçado.Na minha cabeça, havia apenas uma ordem: precisa ser perfeito.E então, entre o público, eu o vi.
Felipe Andrade.Estava parado, de braços cruzados, me observando.
O olhar firme, a expressão séria.Por um instante, minhas mãos hesitaram sobre as teclas — um erro quase imperceptível — mas continuei.Desviei o olhar e tentei me concentrar, mas algo dentro de mim se acendeu.Uma vontade nova, quase esquecida: a de ser vista não como peça de exibição, mas como mulher.Quando a apresentação terminou, permaneci sentada por um tempo, observando o movimento ao redor.
E então, ouvi a voz dele.— Quando disse que veria outras apresentações suas, não sabia que seria tão rápido. — O tom era leve, simpático, e me fez sorrir sem querer.
— Acho que apresentações corporativas estão virando meu forte — respondi.— Você também faz apresentações particulares? — perguntou ele.
Por um instante, congelei.
“Apresentações particulares.”As palavras me atravessaram como uma lâmina, e um pensamento horrível me veio à cabeça.Será que ele achava que eu…?O calor subiu ao meu rosto.— O quê? — questionei, sem esconder o desconforto.
Ele pareceu entender o mal-entendido e sorriu, gentil.— Não é nada disso que está pensando. Perguntei se você tocaria em aniversários... esse tipo de evento.Senti o alívio correr pelo corpo.
— Ah… sim. Faço também.— Ótimo. Minha avó faz aniversário em breve, e acredito que ela adoraria — disse ele.
Peguei um papel e escrevi meu número.
Nossos dedos se tocaram por um instante, e meu coração disparou.Olhei ao redor — e lá estava meu pai, observando, satisfeito, com aquele sorriso calculado que eu odiava.Felipe se afastou pouco depois, e eu precisei me recompor.
Caminhei entre as pessoas, troquei algumas palavras com conhecidos e, finalmente, encontrei a saída para a área externa.O ar fresco da noite bateu no meu rosto, e eu respirei fundo.
Por alguns segundos, o mundo pareceu silencioso.Nenhuma ordem. Nenhuma cobrança. Nenhum olhar me vigiando.Apenas o som distante do piano, ecoando dentro de mim — lembrando que, mesmo cercada por correntes invisíveis, eu ainda sabia tocar.— O que faz aqui que não está conversando com o Felipe? — perguntou meu pai, com o olhar duro.
— Eu só estou pegando um pouco de ar. Além disso, ele já tem outras coisas pra fazer… não vai ficar conversando com uma desconhecida — respondi, tentando manter a calma.— Eu vi ele pegando seu telefone.— Pai, ele só quer me contratar para um trabalho — respondi, firme.— Você sabe que precisa fazer um bom trabalho — disse ele, num tom cheio de segundas intenções. — Pai, o senhor sabe que não concordo com isso. Eu não quero me relacionar com ninguém — murmurei.— Você não tem escolha, Lorena. Apenas faça a sua parte — disse ele, se afastando com passos pesados.Respirei fundo e tentei organizar meus pensamentos. Por um instante, olhei o jardim, o muro, o escuro do céu… Eu poderia pular e acabar com tudo aquilo. Mas não. Eu não tinha coragem. E era melhor parar de pensar besteira.
— Então você é filha do Sérgio Almeida? — perguntou uma voz atrás de mim.
Quando me virei, era Felipe.— Culpada — respondi, forçando um sorriso.— Seu pai é bem conhecido pela empresa de bebidas — comentou ele.— Sim — respondi, sem saber muito o que dizer.E, como no outro dia, me perdi ali, conversando com ele. Rimos, trocamos histórias, e por um breve momento, eu esqueci quem eu era. Felipe Andrade era um homem interessante — mais do que eu esperava.
— Foi um prazer rever você. Espere minha ligação para aquela apresentação que te falei — disse ele, sorrindo.
— Foi um prazer, Felipe — respondi.Enquanto ele se afastava, observei cada passo. E, claro, eu também era observada… pelo meu pai.
Felipe parou e abraçou uma mulher loira, alta, bonita. E, por um instante, desejei que fosse a namorada dele. Seria mais fácil — talvez até suficiente para meu pai desistir daquelas ideias absurdas. Mas, no fundo, eu sabia que nem isso o faria parar.
— Então estava conversando com o bonitão? — disse Laila, surgindo do nada e me tirando dos meus devaneios.
— O quê? — perguntei, surpresa.— O bonitão ali, o Felipe. Ele é tão bonito… e parece ser bem gostoso também — disse ela, rindo alto.— Não seja assim, Laila. Ele só quer me contratar pra outro trabalho — respondi, tentando disfarçar o riso.— Entendi — disse ela, com um sorriso maroto. — Vem, quero te apresentar a algumas pessoas — completou, me puxando pelo braço.Laila me apresentou a alguns amigos empresários — jovens, bonitos, simpáticos. E, por alguns minutos, me senti leve. Há tanto tempo eu não conversava com tanta gente, há tanto tempo uma noite não era simplesmente… agradável.
Quando já era hora de ir, me despedi deles e segui meu pai, em silêncio. A volta, ao contrário do que imaginei, foi silenciosa demais.
Mas assim que passamos pela porta de casa, senti meu cabelo ser puxado com força.
— Ai! — gritei.— Eu te dei uma missão, Lorena! E o que vi hoje? Felipe saindo de lá com outra mulher! — gritou ele, puxando ainda mais meu cabelo.— Nós só nos vimos duas vezes! E ela pode ser a namorada dele! — respondi, chorando.— Não seja idiota! Acha que já não investiguei? Ele não tem namorada. Mas, claro, qualquer pessoa é mais interessante que você — disse, me jogando no sofá com brutalidade.— Sabe que não quero fazer isso… — murmurei, tremendo.— Não perguntei se você quer, Lorena! Sai logo da minha frente, antes que eu perca a paciência! — gritou ele.Me levantei, com o couro cabeludo ardendo, e fui para o meu quarto. Me olhei no espelho: o cabelo bagunçado, os olhos inchados, as lágrimas escorrendo.
Até quando eu ia aguentar aquilo?Tomei banho. E, mais uma vez, a água quente era a única responsável por mandar a dor embora — ainda que por alguns minutos.







