Mundos Conectados

A última vez, era apenas uma garotinha de cabelos ondulados, com um olhar atento e curioso. Agora, à sua frente, estava uma jovem mulher. "Só podia ser ela", pensava Carly, em choque. Eram aqueles mesmos olhos claros, expressivos, e o sorriso que salientava covinhas, mas com um toque de maturidade que a garota do passado não tinha.

— Serina... é você mesma?! — Carly perguntou em um sussurro, a voz embargada pela incredulidade.

— Sim, sou eu. — Respondeu, com emoção. — Estava com medo que não me reconhecesse.

Carly levantou-se, em um impulso, e a abraçou desesperada, como se tentasse recuperar todo o tempo perdido, temendo que, se a soltasse, a irmã fosse desaparecer novamente.

— Mas… o que aconteceu? Por que você está aqui? — Carly tentava formar as palavras, a mente em um caos de perguntas.

— Eu vim para o funeral do professor Castello. Foi uma coincidência triste, mas, quando percebi, lembrei que a mamãe estava enterrada neste mesmo cemitério. — Serina fez uma pausa, os olhos fixos na irmã. — Quem diria... que eu finalmente te encontraria. Aliás, te procurei por um tempão.

Serina sorriu com ternura, desviando o olhar para a lápide. Ali estava o nome que as conectava, um ponto final na vida que elas compartilharam: Elyssa Nissin Ramires (1967-2009). A emoção era evidente em seu rosto, um silêncio que falava mais do que qualquer palavra.

— Espera aí… não acredito? Eu também vim por causa dele! Quer dizer, do filho do professor, nós somos colegas de profissão. Só que, infelizmente, não tive a oportunidade de conhecer ele pessoalmente.

Carly sentou-se novamente, apoiando as costas em uma lápide fria, enquanto Serina parecia absorver a cena.

— Mas me conta, como você conhecia esse professor? — A voz de Carly cortou a quietude do momento.

Serina desviou o olhar para o céu, uma tristeza genuína em seu rosto.

— Simples, ele era o meu professor. Um professor incrível, conselheiro maravilhoso. Ele foi um dos poucos que me ensinou a encontrar a minha própria voz. Nem acredito que ele se foi.

— Não fique triste, irmãzinha. Graças a ele, estamos nos revendo de novo. E agora, pode contar comigo.

Serina a encarou seriamente, com o olhar carregado de mágoa.

— Você é inacreditável. Onde estava esse tempo todo? Nunca sequer me procurou! Sempre soube onde me encontrar, mas você nunca foi me ver.

— É que... depois de tudo o que houve fiquei traumatizada. — Carly confessou, a voz embargada. — Não tive coragem de voltar. Ainda é doloroso demais para mim, sabe? Me desculpa... eu tentei te procurar nas redes sociais, mas não consegui te achar.

Serina comprimiu os lábios, olhou para a irmã, com o rosto tomado de culpa. A justificativa parecia vazia, mas válida.

— Eu não uso essas coisas. Nem gosto de ficar me expondo! — Serina disse, o rosto tenso.

Carly a encarou com incredulidade. 

— Sério! Que tipo de jovem careta é você? Não, só falta me dizer que ainda é…

Aquelas palavras atingiram Serina com força, ela interrompeu: 

— Ei, por acaso te dei essa ousadia? Pode parar, não vou aceitar isso. Você não sabe de nada! E não precisa me dizer nada. Porque, se percebe o quão bem resolvida você é pela maneira como fica tão à vontade, sentada neste lugar! — Ela tentou se controlar, mudando de assunto. — E se quiser, pega logo o meu número pessoal.

Ela pegou o celular na bolsa, repassando para a irmã adicionar o contato.

— Desculpa por isso, não é minha intenção te ofender, mas me conta... por que você continua morando com ele? — Carly perguntou, a culpa evidente na voz.

— Ele não mora mais por aqui. Depois que virou governador, achou melhor viver em uma fazenda, na região do Rio Frontal. Só vem por aqui resolver negócios. — Serina respondeu, a voz carregada de ressentimento. — Mas… você é uma ingrata. Nunca teve a mínima consideração por mim.

Carly respirou fundo, tentando manter a calma.

— Já expliquei, e você não é mais nenhuma criança. Tá bem grandinha para entender as coisas, sem censura.

Serina deu um sorriso sem graça.

— Olha quem fala… Por que você não se liberta disso?

Carly, já incomodada, cruzou os braços como uma forma de protesto.

— Claro! — Retrucou, com a voz carregada de ironia. — Por que eu teria medo de quem já se foi? Os que estão enterrados não podem mais fazer nada! — Ela enfatizou a última palavra, encarando fixamente a irmã. — Talvez estejam em um lugar melhor que a gente.

Ela se levantou em um salto, limpando a calça escura. Enquanto Serina se afastava em disparada, sem dizer uma palavra, o grito de Carly ecoou pelo cemitério, chamando a irmã de covarde. O som de sua voz fez os pássaros se espantarem. Serina, em resposta, parou e virou-se. Com um sorriso maquiavélico no rosto, murmurou:

— Ainda bem que salvei o seu número!

Naquela noite, enquanto a cidade dormia, alheia ao peso da culpa que se instalava em dois corações. Pedro, tentava enfrentar os fantasmas que o assombravam. Paralelamente, Carly tentava desvendar o retorno da irmã em sua vida. A busca por uma reconciliação se misturava ao medo da estranha que havia se tornado.

Três semanas depois…

A exaustão de Pedro ainda era palpável. As lembranças, carregadas de saudade, vinham como ondas implacáveis. 

Ao chegar no hospital, Carly deu de cara com ele no elevador. O seu corpo estava curvado. Ele mal a cumprimentou, o olhar perdido e os olhos avermelhados entregando as noites em claro. Sem pensar, ela o envolveu em um abraço firme e silencioso, como se quisesse prendê-lo no presente, impedindo que ele se perdesse na escuridão de sua própria dor.

Erguendo o olhar para o teto, ela murmurou suavemente:

— Vamos sair daqui? Ir para algum lugar? O que acha?

Pedro hesitou, confuso, piscou algumas vezes, antes de responder.

— Como assim? Você não acabou de chegar?

Ela sorriu de leve.

— Agora, meu compromisso é com você. Serei sua terapeuta hoje. Acredito que você precisa de alguém para conversar. Estou a sua disposição doutor.

Ele arqueou uma sobrancelha, tentando imaginar onde aquilo o levaria.

— Sério? Então… quanto isso vai me custar?

— Talvez um preço bem alto… Precisamos de um carro para fugir. 

Eles trocaram sorrisos cúmplices, um alívio mútuo.

O caminho os levou até uma praia deserta. A tranquilidade do lugar era quase palpável, o som das ondas quebrando na areia era o único barulho, e o cheiro de sal e maresia preenchia o ar. Ele estacionou o carro e observou o lugar com curiosidade.

— O que exatamente estamos fazendo aqui?

Carly saiu do carro e esticou os braços, sentindo a brisa tocar seu rosto.

— Tomar um pouco de sol em um dia de trabalho... 

— Como fica o nosso emprego?

— Relaxa, só ponha para fora tudo o que está sentindo nesse momento. 

Pedro riu nervoso, cruzando os braços.

— Não… Isso é estranho. Melhor irmos embora.

Carly virou-se para ele, com ousadia, perguntou:

— Por quê? Você prefere continuar assim, guardando tudo para si, fingindo que está tudo bem? Onde está o Pedro que eu conheci, cheio de convicção e virtudes? — Ela soltou um suspiro, com o olhar fixo no céu nublado. — Não se limite por querer dar uma de machão... Não acredita que seu pai está em um lugar melhor? Cadê aquele homem que acredita em Deus.

Ela fez uma pausa, a voz mais suave.

— Apenas achei que você estaria preparado para momentos como este. São inevitáveis. Pedro, você não pode se entregar às coisas que te atormentam. 

Um som doloroso rasgou a garganta de Pedro, antes das palavras saírem como um soco.

— Para! Você não tem ideia do que eu estou sentindo. Você só fala e fala… mas eu estou com raiva! Muita raiva! Eu perdi meu pai, alguém muito importante na minha vida, e eu não pude fazer nada! É fácil falar quando você não está no lugar!

A voz dele se quebrou no final. Sentindo as lágrimas queimarem sua pele, Pedro sentou-se na areia com as mãos sobre os olhos, sem forças. O peso do mundo parecia esmagá-lo, e ele se sentiu pequeno, exposto e sozinho.

— Quer saber? Você está muito enganado, Pedro. Eu sei exatamente o que você sente.

Ele tirou as mãos dos olhos e a olhou, confuso. Não era possível que ela soubesse daquela dor.

— Perdi minha mãe quando tinha 13 anos. Foi tudo tão rápido... Foi como se o mundo desabasse, um tornado que destruiu tudo o que eu tinha de mais precioso. Eu me senti arrasada, ainda hoje sinto raiva, por não ter conseguido fazer nada.

Pedro ficou em silêncio, absorvendo aquilo.

— Me desculpe…  — murmurou, limpando as lágrimas com as costas da mão. — Olha só para mim… Um homem chorando… 

— Quem te disse isso?! — Ela o encarou, com um leve sorriso. — Acho charmoso. 

— Quê? — Pedro franziu o cenho, o choque misturado à confusão em seu rosto.

— Quem inventou essa regra de que homem não chora? Isso não é fraqueza, é o reconhecimento de um homem!

Ele suspirou, dando uma risada amarga em seguida. Deixou a cabeça pender para trás, encarando o céu.

— Pode ser… — A voz de Pedro saiu baixa, um sussurro de dor. — Eu sou o filho do meio de cinco irmãos, agora, sou praticamente o líder da família. O mais velho é complicado. Minha outra irmã é casada, já tem suas responsabilidades, e os mais novos são adolescentes gêmeos... Eu não estava preparado para lidar com isso. 

Carly manteve o olhar suave sobre ele. Ela ficou em silêncio por um momento, absorvendo aquelas palavras.

— E seus irmãos mais velhos não moram aqui?

— Não… Gutto, mora em Nova York. Ele trabalha como advogado criminal. A Pri mora em Campos do Jordão, tem uma filha de três anos e um trabalho bem puxado. No fim, essa responsabilidade recai sobre mim, cuidar da mamãe, do Gui e da Gi.

— Você fez tudo o que podia, Pedro. Lembre-se disso. Existem coisas que, infelizmente, não estão sob o nosso controle.

Ele riu sem humor, um som de dor e frustração.

— Não foi o suficiente. 

Carly estendeu a mão e segurou a dele por um breve momento, olhando no fundo dos seus olhos.

— Precisa acreditar que, mesmo diante da dor, há um propósito para isso. A cicatriz fica, mas você vai superar.

Ele a olhou com ternura.

— Obrigado por tudo… 

Eles continuaram ali por mais um tempo, em meio a conversas e risos, deixando a brisa e o som das ondas levarem parte das tristezas que carregavam.

Quando voltaram ao hospital, Pedro deu um sorriso sincero:

— Te vejo amanhã?

Carly ergueu uma sobrancelha.

— Claro, mas você não vai trabalhar?

— Só à noite. Eu não iria correr o risco de perder meu emprego.

Ela riu, cruzando os braços.

— Pedro, não sei do que você está falando…

— Então, é livre e espontânea pressão?

Ela fingiu pensar, tentando manter a postura.

— É uma longa história.

— Eu aguardo para ouvir. Até amanhã, Carly. — Despediu com um sorriso largo.

Em meio à dor, algo inusitado e inesperado começou a florescer dentro dele. Seu coração acelerou, as mãos suaram, e uma sensação de borboletas no estômago fluía. O novo sentimento era um contraste com a tristeza que ele sentia, uma faísca de esperança que se acendia em seu peito.

O mundo deles pareciam conectados por tragédias silenciosas e segredos não ditos, que se moviam em direção a um ponto de colisão inevitável.

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