Mundo ficciónIniciar sesiónA vida nem sempre oferece pausas.
Na madrugada de segunda-feira, o sono de Pedro foi bruscamente interrompido. O toque insistente do celular rasgou o silêncio do quarto, e ele atendeu, ainda atordoado. A voz do outro lado era da sua mãe, Helena, informando o que aconteceu com o seu pai.
Gustavo havia sido levado às pressas ao pronto-socorro com um quadro de infecção pulmonar, exigindo internação imediata. Pedro correu até o hospital, com a mente seguindo em um borrão de adrenalina.
Ele encontrou a mãe ao lado do leito, os ombros curvados e os olhos marejados, uma sombra de desespero em seu rosto. A fé, que sempre foi um pilar da família, parecia estremecida, frágil como porcelana.
Aquele ambiente parecia suspenso pelo tempo, o relógio na parede da UTI parecia quebrado, então, ele saiu do quarto por alguns minutos, o silêncio era esmagador. O único som era medido pelo bip monótono dos aparelhos e o de seus próprios passos no corredor. Ele se encostou na parede, com a cabeça baixa, tentando absorver o choque e a exaustão.
Foi então que um vulto na ponta do corredor o fez erguer a cabeça. A figura era familiar, mas completamente fora de lugar, como um sonho que se intromete na realidade. Ali, em meio ao cheiro de antisséptico e à luz fria, surgia sua tia, a irmã mais nova de Gustavo.
Ela, a renomada médica pneumologista que ele não via há anos, estava ali. A presença dela, em um momento tão crítico, era um alívio inesperado e uma nova, tênue, ponta de esperança.
— Fiquei sabendo do seu pai e vim correndo. — A voz dela era baixa, quase um sussurro, rompendo o silêncio. — Como ele está?
Pedro ficou paralisado por um momento, ainda processando a presença dela. A exaustão e o alívio se misturavam em sua expressão. Ele se forçou a encontrar a voz, com as palavras quase se desfazendo.
— Ele vai ficar bem. Ele vai sair dessa… não vai, tia?
Ela ergueu um sorriso triste, mas firme e o abraçou com ternura, um gesto que valia mais que palavras.
Depois seguiram para o quarto, onde Gustavo estava internado. Isabella entrou primeiro, deu um pequeno sorriso e cumprimentou a cunhada. Olhou para o irmão e apertou sua mão com carinho. Analisou o quadro com atenção profissional. Seus olhos, no entanto, não escondiam a preocupação, mas ela preferiu não comentar nada.
A presença de Isabella era um milagre à parte. Ela morava em São Paulo e estava ali apenas de passagem, como palestrante em um congresso de medicina. Sua vinda pareceu uma providência à parte.
Ao amanhecer, a família se reuniu em um círculo de oração. Pedro iniciou essa corrente buscando forças para consolar a mãe e os irmãos. Ao sair orou novamente em silêncio, tentando manter-se firme.
Durante a tarde Gustavo finalmente despertou. Pedro deu um sorriso e inclinou-se sobre o leito do pai, sentindo uma pontada de esperança no coração.
— Eu te amo, pai. Você sempre foi o melhor em tudo. E quero poder estar sempre ao seu lado. Vamos ter fé... talvez amanhã o senhor já pode voltar para casa. Vou providenciar tudo.
Gustavo, com um sorriso fraco, olhou atentamente para o filho, que não parava de falar.
— Deus te ouça, meu filho. Não aguento ficar aqui. Queria poder sair logo e ir para o trabalho, dar as minhas aulas... preciso revisar alguns projetos essa semana. Meu filho, me passa o celular, por favor? — Pediu, a voz fraca, mas com um toque de determinação.
Ao ver a tela, Gustavo abriu um sorriso que fez os olhos de Pedro marejarem, mas o esforço o fez tossir forte.
Assustado, ele pegou o estetoscópio e o encostou no peito do pai, fazendo a ausculta com atenção redobrada.
— Pai, você tem que descansar.
Gustavo balançou a cabeça, meio sem forças.
— São meus alunos e seus irmãos... preciso responder.
— Não precisa, pai. Eles vão entender. Agora, por favor, descanse. — Insistiu, guardando o estetoscópio e ajeitando o cobertor do pai. — Pode deixar, eu cuido de tudo. Me devolve esse telefone.
— Cadê a sua mãe? Quero falar com ela.
— Ela foi em casa descansar um pouco.
Pedro o observava atento.
— Vou ligar. Mas não se esforce, por favor.
Uma hora depois, Helena apareceu apressadamente na porta da UTI, com o rosto marcado pela exaustão.
— Pedro? Pode ir trabalhar, que eu vou cuidar dele agora.
Ela se aproximou do leito, o coração batendo forte. Gustavo, com um esforço visível, retirou a máscara de oxigênio e estendeu a mão.
— Amor... pode ficar tranquila, eu tô bem — disse ele, com um sorriso fraco. — Só queria te ver para dizer outra vez que te amo.
As lágrimas de alívio escorriam pelo rosto de Helena enquanto ela segurava a mão dele.
— Não sabe o susto que você me deu.
— Mas se eu partir, não se preocupe. Estarei em um lugar bem melhor. — Ele sussurrou, com a voz serena.
— Não brinque com isso, amor! — Ela retrucou, com aflição. — Não. Ainda temos muitos anos pela frente, com fé em Deus.
Ele a observava com afeição, um olhar que ia além da dor do momento. Via em seu rosto as finas linhas de expressão que o tempo esculpiu ao redor dos olhos, marcas de tantos anos de sorrisos e preocupações. Os fios grisalhos que se misturavam aos de tonalidade castanho, que insistia em manter naturais, eram um mapa da vida que eles construíram juntos.
Seus olhos em tons de mel estavam marejados, mas ainda tinham a mesma intensidade e a mesma beleza que o conquistaram. Era um olhos que o conheciam por inteiro. Ele apertou a mão dela, relembrando os momentos alegres que viveram juntos, dedicados à família. Naquele instante, a essência de sua Helena, cheia de esperança e fé transbordou. A beleza não estava na juventude, mas na resiliência, na força e no amor que ela exalava, e por isso ele a amava tanto.
Em meio a risos e lembranças compartilhadas, ele olhou mais uma vez para a mulher. Com os olhos fixos em um ponto distante, fechou-os lentamente. A voz, agora suave e etérea, parecia a de alguém que fazia um balanço da vida.
— Que benção a minha… Tive os melhores momentos em comunhão com Deus, e Ele me deu vocês de presente. Uma família abençoada.
A enfermeira veio com a medicação. Gustavo, então, abriu os olhos novamente, com um sorriso sereno.
— Helena, querida. Deita aqui um pouco.
Ela riu de nervoso, chorosa. Limpando o rosto, deitou a cabeça suavemente ao lado dele.
— Como consegue ter tranquilidade quando eu estou aflita? — Ela perguntou, com a voz embargada.
Helena o acariciava suavemente enquanto ele adormecia. No limiar do sono, ele murmurou, com a voz quase inaudível:
— Agora… sinto uma paz tão grande. É como se eu já estivesse voltando para casa.
Aquelas foram as últimas palavras de Gustavo.
Quando se deu conta, Helena desabou em lágrimas sobre o corpo do marido. Pedro correu até o quarto, um choro mudo e desesperado quebrou o silêncio da UTI e estilhaçou o seu mundo. Aquele som se tornou a única coisa real, ecoando no vazio que seu pai deixaria. Ele sentiu algo avassalador.
A realidade se impôs, como uma dor física, um fardo que o dobrava ao meio. A perda era como um abismo profundo e solitário, mas a responsabilidade que recaia era a de poder ser um alicerce para sua mãe e irmãos mais novos. O coração, antes cheio de fé, desmoronou.
A responsabilidade de cuidar do funeral foi uma das provas mais duras que Pedro enfrentou. Cada decisão, cada detalhe, era um lembrete doloroso que seu pai se foi. Durante a cerimônia, ele se manteve ao lado da mãe, que soluçava inconsolável, tentando, com todas as suas forças, ser o pilar que a família precisava. Mas por dentro, ele também estava em frangalhos, despedaçado por uma emoção que conseguia acalmar.
Os rostos passavam como borrões, cada um com uma palavra de conforto que ele mal conseguia ouvir. Até que, ao longe, algo quebrou a melancolia da cena: um homem de estatura mediana, de terno impecável e óculos escuros, desceu de um carro preto. Havia uma formalidade fria em sua postura, um contraste tão grande com a dor daquele lugar. Por um instante, a dor foi substituída por um choque. Pedro não precisou de mais do que o porte familiar. Ele reconheceria seu irmão mais velho em qualquer lugar.— Guto... — Sussurrou, com o nome preso na garganta, misturando surpresa e uma pontada de mágoa.
Gusttavo Júnior, ou Guto, como a família o chamava, vivia em uma realidade distante. Advogado criminal em Nova York, sua vida era intensa e implacável, e as visitas eram raras. Pedro mal se lembrava da última vez que o viu pessoalmente, e a presença dele ali era tão inesperada quanto um relâmpago em um céu limpo.
O irmão retirou os óculos escuros, um gesto que parecia uma quebra de sua armadura. Seus olhos, antes escondidos, revelaram um cansaço profundo, mas que ainda mantinha um ar de superioridade.
Antes de se voltar para a mãe, Guto fixou o olhar em Pedro por um instante, um contato silencioso, carregado de anos de desavenças. Então a abraçou forte, mas com uma ternura.
— Perdão, mãe. Eu peguei o primeiro voo assim que soube. — A voz de Guto era baixa e rouca, e a tristeza era evidente em seu rosto ao ver o caixão.
Helena apenas assentiu, sem forças para expressar qualquer palavra. A dor que sentia era tão intensa que o simples gesto de reconhecer a presença do primogênito era o máximo que ela conseguia naquele momento.
Guto cumprimentou parentes e amigos com um aperto de mão e um aceno de cabeça, como se estivesse em uma reunião de negócios. O contraste entre sua postura e o luto era gritante. Quando ele finalmente chegou em Pedro, o silêncio falou mais alto que qualquer palavra.
— Parece que faz tempo… — Pedro comentou, a voz baixa, carregada de mágoa.
— Sim, parece mesmo. Lamento não estar tão presente, mas você sabe... — Respondeu, com a voz rouca. — Parece que ele até sabia. Ele foi me visitar, até almoçamos juntos.
Guto evitou o olhar de Pedro, como se o que tinha dito fosse um segredo íntimo que não deveria ser compartilhado.
— Que maravilha… — Pedro comentou, o som de sua voz se perdendo no ar.
A conversa entre eles morreu ali.
Pedro, como um autômato, manteve-se de pé até o último momento. Mas para ele o enterro foi quase como um borrão. Quando a multidão se dispersou, deixando-o sozinho com seus familiares, o peso da realidade o atingiu com força total. O mundo, de repente, perdeu a cor. Era como se ainda conseguisse ouvir a voz do seu pai, sentir o abraço dele, ver o seu sorriso caloroso, mas tudo se foi de repente. Essa verdade era uma sensação insuportável.
Enquanto Pedro lidava com a inquietação dolorosa da perda, Carly confrontava seus próprios fantasmas. A ida ao funeral de Gustavo foi um ato de obrigação, a relutância nítida em seu rosto ao lado de Deise e Gael. Contudo, a presença no cemitério a fez revisitar seus próprios fantasmas. Por coincidência do destino, era ali que sua mãe foi enterrada.Afastando-se da multidão, encontrou consolo na solidão. Sentou-se na grama ainda úmida, a atenção focada na pequena imagem de sua mãe, que parecia sorrir com o mesmo brilho de sempre. Ela estava completamente dispersa nas lembranças, quando uma voz ecoou atrás dela, quebrando a bolha do seu momento.
— Carline…?
O nome, "Carline", ecoou como um sino distante. Ela parou, imóvel. Ninguém a chamava assim há anos, aquilo era como uma senha para uma vida que ela havia trancado. Com o coração disparando, ela se virou lentamente, sentindo o mundo desacelerar ao seu redor. Era difícil acreditar que aquilo era possível, que o passado pudesse ressurgir tão de repente.






