O carro deslizou pela estrada de forma quase imperceptível, como se os faróis fossem os únicos olhos atentos naquele fim de noite. Carly mantinha as mãos no volante com firmeza, mas a sua respiração denunciava a preocupação. Ao lado, Monteiro mantinha-se sereno, como um pilar silencioso.Nenhum dos dois falava. O rádio estava desligado. Por fora parecia tudo tranquilo, mas por dentro inquietante. Aquele silêncio que antecede um mergulho.— Ainda dá tempo de voltar? — Murmurou, com os olhos fixos na estrada.— Quer dar para trás? Acredito que se formos, vai me agradecer depois... — respondeu Monteiro.Ela estava olhando de relance para ele, indignado. Acrescentou: — Poxa Carly, você já foi até aquele fim de mundo procurar ela. Agora vai desistir?— É, mas agora não sei se quero continuar com isso.— Tenha coragem. Estamos chegando. — Ele apontou com o dedo, onde deveria estacionar. — Para perto daquela viela. Carly estava a alguns metros de distância. Ficou parada, encarando o própri
A madrugada parecia mais silenciosa do que nunca quando Carly e Monteiro voltaram para o carro. O vento leve batia nos cabelos dela enquanto caminhavam, sem pressa, como se ambos quisessem esticar o pouco tempo que ainda tinham juntos.Monteiro, sempre atento, abriu a porta do carro para ela, com um sorriso de canto, quase despreocupado, mas seus olhos não negavam o cansaço e a tensão contida pela noite intensa. Seus olhos pesavam, só queria chegar em casa e dormir.Então, Carly acomodou-se no banco e fechou os olhos por um instante, sentindo a vibração suave do motor ligando. Monteiro soltou um suspiro, ligou o farol e partiram, deixando para trás a penitenciária feminina e a figura sombria de Marta, que ainda ecoava em sua mente.No interior do carro, era nítida a sonolência em meio a um silêncio denso pela estrada. De repente Carly se espantou.— Você está bem? — Monteiro perguntou, mantendo os olhos na estrada.Ela assentiu, olhando para a janela, onde as luzes de uma vila começav
A noite começava a ganhar vida no salão principal do El Dourado, cenário da tradicional cerimônia anual do hospital. Era o ápice do ano para os profissionais da saúde, um momento de reconhecimento pelas batalhas diárias e pelas vidas transformadas ao longo do caminho. Luzes sofisticadas refletiam nos lustres de cristal, enquanto uma música suave preenchia o ambiente.Os convidados trocavam sorrisos, brindes e abraços calorosos, celebrando com entusiasmo. E ali, em meio ao brilho da festa, estava a deslumbrante fisioterapeuta Carly Ramires. Seu nome ecoou pelos alto-falantes, chamando-a ao palco.Ela caminhou sob os holofotes com um sorriso mecânico, recebendo o prêmio de excelência profissional. O troféu nas mãos não suavizava o incômodo em seu peito. "O que eu estou comemorando, afinal?", pensou. Enquanto descia os degraus, os cumprimentos pareciam distantes.— Parabéns, Carly. Você merece! — diziam os colegas.Mas por dentro, ela sabia: aquele reconhecimento não era suficiente.À mar
O culto havia encerrado, Pedro estava sentindo-se leve. A comunhão daquele lugar sempre lhe trazia paz, mas, ultimamente, os dias não estavam fáceis. Principalmente porque tinha alguns sentimentos reclusos, algo que o inquietava. Nisso, acabou saindo com pressa da igreja. Enquanto caminhava em direção ao estacionamento, seu olhar foi atraído pela lanchonete da esquina.Lá estava ela, sozinha, distraída no celular, tomando um milkshake. Seus olhos paralisaram naquela imagem. A lembrança do primeiro encontro entre os dois surgiu com nitidez. Os olhos claros e expressivos, que à primeira vista pareceram assustados. Os lábios delicados, a postura confiante dela. Na época, ele chegou a imaginar que uma mulher como aquela só podia ser comprometida. Lhe tratou com respeito. Era muito preciosa. Mas ele estava chateado com ela, porque sem aviso algum, simplesmente... se afastou.Pedro hesitou. Devo ir até ela... ou é melhor ignorar isso? Pensou.A dúvida o fez andar de um lado para o outro, de
Para Pedro, o funeral do seu pai foi um dos momentos mais difíceis que ele enfrentou na vida. O homem que lhe ensinou tudo sobre fé, caráter e determinação, agora partia, deixando um vazio impossível de preencher. Durante a cerimônia, sua mãe estava inconsolável, e Pedro tentava ser forte por ela. Mas, no fundo, ele também estava destruído.Entre os rostos conhecidos que vieram prestar condolências, um, em especial, chamou sua atenção. Ele avistou de longe um homem alto, de terno impecável, óculos escuros e expressão séria que desceu de um carro preto e vinha caminhando na direção deles. Pedro não precisava de apresentações. Ele reconheceria seu irmão mais velho em qualquer lugar.— Gutto… — murmurou Pedro, engolindo a seco, surpreso.Gusttavo Filho, ou Gutto, como era chamado pelos mais íntimos e a família, ele morava em Nova York há anos. Advogado criminal, levava uma vida intensa e quase nunca vinha ao Brasil. Pedro mal se lembrava da última vez que o viu pessoalmente. O irmão reti
Pedro estava exausto. O luto pesava sobre seus ombros como uma corrente invisível que o arrastava para um vazio difícil de escapar. Desde o enterro do pai, sua mente não encontrava descanso. As lembranças vinham e iam, cada uma delas carregada de culpa e saudade. Carly percebeu isso. Então, assim que ela o viu entrar pelo elevador para ir embora de mais um expediente, ela correu para o acompanhar. Ele mal a cumprimentou. Seu olhar estava perdido, os olhos avermelhados denunciavam as noites sem sono. Sem pensar muito, ela o envolveu em um abraço firme, como se quisesse segurá-lo no presente, impedindo que ele se perdesse em sua própria dor.Erguendo o olhar para o teto, ela murmurou suavemente:— Vamos sair daqui? Ir para algum lugar? O que acha?Pedro hesitou, sem entender, piscando algumas vezes antes de responder.— Como assim? Você não está com pressa para ir para casa?Ela sorriu de leve.— Agora, meu compromisso é com você! Serei sua terapeuta hoje. Acredito que você precisa de a
O vento frio soprava pela fresta da porta entreaberta, carregando consigo um som inquietante e dramático, "Moonlight Sonata - Beethoven." Carly, ainda criança, espiava o quarto dos pais, segurando a respiração, sentindo seu coração bater acelerado no peito. Na sacada, sua mãe estava parada, com os cabelos bagunçados pelo vento noturno, segurando Serina, ainda bebê nos braços. Seu olhar parecia distante, perdido em um ponto além da escuridão. Algo na cena fazia Carly estremecer. De repente, a porta do quarto se abriu com força, e seu pai surgiu apressado.— O que você pensa que está fazendo?! — a voz dele soou como um trovão na noite.Ele avançou rapidamente, segurando o braço da esposa com firmeza e arrancando Serina de seus braços. Carly viu quando sua mãe desabou na cama, chorando de forma desesperada, como se sua alma estivesse em pedaços.— Você enlouqueceu? — o pai gritou, a voz carregada de medo e desespero.A mãe apenas soluçava, escondendo o rosto entre as mãos, incapaz de re
Pedro não conseguia raciocinar muito bem naquela noite. Depois do pedido e do beijo que deu em Carly, sua mente estava um verdadeiro caos. Se antes já se preocupava com seus sentimentos, agora precisava lidar com as consequências de suas atitudes. Ao chegar em casa, percebeu que sua mãe ainda estava acordada. A luz do quarto dela permanecia acesa, e, assim que ele passou pelo corredor, Helena chamou seu nome.— Pedro, aconteceu alguma coisa? Você parece assustado.Ele hesitou por um momento, evitando encará-la diretamente.— Não, está tudo bem, mãe. Só estou meio cansado.Helena o observou por alguns instantes da porta, como se tentasse decifrá-lo.— Tem certeza? Você está com uma cara de culpado… Sei quando algo está te incomodando.Pedro respirou fundo, mantendo a postura firme.— Só um dia longo, mãe! Vou tomar um banho e descansar. Sem dar espaço para mais perguntas, seguiu para o quarto dele. Helena não insistiu, mas também não parecia convencida. Ela tinha até "nome" para quem