Narrado por Helena e Henry
HELENA A manhã era de um azul cristalino, o tipo de céu que enganava. Bonito demais para combinar com o caos que pulsava dentro de mim. Desde o jantar desastroso com Leonardo e Henry, não consegui tirar os olhos daquele momento em que Leonardo, com toda sua arrogância, humilhou Henry sem pudor. E Henry... aquele homem tão calmo, tão íntegro, sustentando o olhar com dignidade, sem abaixar a cabeça. Isso mexeu comigo. E isso me assustou. Vesti uma calça social branca, uma camisa azul de seda que combinava com meus olhos e prendi o cabelo em um rabo de cavalo alto. Precisava parecer forte. Cheguei à garagem, onde Henry já me esperava ao lado do carro preto importado, impecável como sempre. — Bom dia, senhora Macedo — ele disse com um sorriso sutil, mas educado. — Bom dia, Henry — respondi, tentando esconder o calor que subia pelo meu rosto. Durante o trajeto, o silêncio era confortável, mas denso. Nossos olhares se cruzavam no espelho retrovisor de tempos em tempos. E cada vez que nossos olhos se encontravam, um arrepio me percorria a espinha. Eu queria fugir daquela sensação, mas também queria me afundar nela. — Sobre o que aconteceu ontem... — comecei, quebrando o silêncio. — Me desculpe por Leonardo. Ele passou dos limites. Ele olhou para mim por um instante, depois voltou a fitar a estrada. — Não precisa se desculpar. Estou acostumado com esse tipo de gente. A resposta dele me apertou o peito. Eu odiava admitir, mas Leonardo não era apenas grosso — ele era cruel. E Henry não merecia aquilo. Chegamos à sede da empresa, uma torre envidraçada no centro financeiro da cidade. Eu administrava o braço de tecnologia da holding da minha família, uma das empresas mais sólidas do grupo. E apesar de jovem, eu era respeitada. Talvez por minha postura firme, talvez porque sabiam que eu tinha o nome Macedo por trás. Cumprimentei todos os funcionários da recepção com um sorriso e uma gentileza sincera. Eu fazia questão de saber os nomes de cada um. Sempre fiz. Cresci com tudo, mas nunca aceitei a ideia de que isso me fazia melhor do que ninguém. Na sala de reuniões, durante uma apresentação, dei por mim olhando pela janela... pensando nele. Naqueles olhos castanhos, no silêncio que gritava entre nós. E quando me dei conta, ele também me observava da rua, encostado no carro, esperando meu dia acabar. Meus lábios formaram um sorriso involuntário. Eu estava perdida, e sabia disso. HENRY Desde o momento em que entrei na vida dela, senti que minha história estava para mudar. Helena não era como as outras mulheres que vi nesse mundo de ricos e podres de alma. Ela era diferente. Forte. Mas quebrada. Quando Leonardo tentou me humilhar, minha vontade era socá-lo. Mas eu não podia. Eu precisava do emprego, e... não sei explicar. Eu precisava estar perto dela. Aquela mulher me despertava uma memória que não era exatamente dela. Mas algo antigo. Uma sensação de déjà vu constante. Desde o acidente, há dois anos, minha mente era um quebra-cabeça faltando peças demais. Eu apareci numa estrada de terra, ferido, sem documentos. Fui dado como indigente e levado ao hospital. Quando saí, recomecei. Me chamaram de Henry Rodrigues — um nome qualquer, dado por um enfermeiro que gostava de novela. Mas havia algo em mim que dizia que eu não era dali. Meus hábitos, meu modo de falar, minha facilidade com línguas. Certa vez, sonhei com uma mansão branca, rodeada de vinhedos. Acordei com gosto de vinho na boca. Naquela manhã, antes de buscar Helena, recebi uma ligação estranha. Uma voz grave do outro lado. — Henry? É você? Você está vivo? Eu desliguei, assustado. Aquela voz... parecia familiar. Mas ao mesmo tempo, me dava medo. EM OUTRO LUGAR — CASA DOS PAIS DE HENRY — O investigador particular encontrou uma pista — disse Álvaro, pai de Henry, com os olhos marejados. — Parece que alguém com as feições dele foi visto trabalhando como motorista em uma empresa no Brasil. — Você acha que é mesmo nosso filho? — perguntou Helena, a mãe, segurando uma foto antiga de Henry, antes do desaparecimento. — O coração de pai sente, Lena. Ele está vivo. E vamos encontrá-lo. Eles conversavam em frente à lareira da casa principal, um casarão colonial no interior de Portugal, rodeado por vinhedos que pertenciam à família há gerações. Desde que Henry desapareceu, nada era mais importante do que trazê-lo de volta. — Já fazem dois anos — a mãe chorava. — Dois anos sem saber se ele está bem, se está sendo cuidado... — Agora temos uma pista. E eu vou até o fim. O investigador vai para o Brasil amanhã. Não vamos desistir. HENRY — NO PRESENTE Quando estacionei na frente da empresa, Helena estava linda. Impecável. Mas havia uma tristeza nos olhos dela, algo que ela tentava disfarçar com sorrisos. Eu via. Eu sentia. — Henry... posso te perguntar algo? — ela disse, enquanto entrava no carro. — Claro. — Você... você tem família? A pergunta me pegou de surpresa. Travei por um segundo. — Não... não que eu me lembre. Ela franziu a testa. — Como assim? — Eu perdi a memória. Faz dois anos. Não sei quem eu era antes disso. Ela me olhou, chocada. Um silêncio pesado caiu no carro. Ela não disse nada por alguns segundos, depois tocou meu braço com delicadeza. — Você não está sozinho. Quis beijá-la ali mesmo. HELENA — DE VOLTA À MANSÃO Era noite. Eu desci do carro com o coração em chamas, tentando esquecer o que aqueles olhos me causavam. Mas tudo piorou quando entrei no quarto e vi Leonardo, de toalha, saindo do banheiro. E ali, deitada na minha cama, uma mulher loira, de lingerie, sorria com deboche. — Isso é um pesadelo? — perguntei, sentindo a raiva subir como um incêndio no peito. — Não seja dramática, Helena. Você sabe que nosso casamento é só fachada — disse Leonardo, com frieza. — SEU DESGRAÇADO! — gritei, jogando uma almofada na direção dele. — Você só é alguém por causa de mim, querida. Sem meu dinheiro, sua família estaria pedindo esmola. Quer mesmo arriscar perder isso tudo? As palavras dele me cortaram como faca. Eu me virei, saí batendo a porta e desci até o bar da casa. Enchi um copo de whisky e bebi de uma vez só. Mas naquela noite, antes de dormir, não foi o rosto de Leonardo que me veio à mente. Foi o de Henry. E pela primeira vez em muito tempo... sorri.