Eu não voltei para casa por saudade — voltei para empacotar o pouco que restava de mim. Mas, quando entrei, percebi que não havia nada ali que valesse a pena lembrar.
Sempre vivi no depósito — o canto mais pequeno, úmido e escuro que puderam me ceder. Só havia roupas velhas lá dentro, e mesmo essas eram restos que ninguém mais queria. O closet de Elsa era três vezes maior que o meu. Tudo o que ela não queria mais acabava no meu quarto — como se eu fosse nada além de um depósito de lixo.
Quando terminei de empacotar, meu telefone tocou. Era o guardião do cemitério.
— Alô, Jennifer. Você me pediu pra reservar aquele túmulo que escolheu, lembra? Se você vier logo com as moedas de prata e fechar, eu seguro ele pra você. Caso contrário, pode ser que alguém mais o pegue.
Escolhi aquele túmulo apenas uma semana atrás.
Era silencioso, rodeado de flores-da-lua e rosas brancas — o tipo de paz com que minha loba sempre sonhou. Ela dizia que queria descansar ali, bem longe desse mundo cruel e amargo.
Mas agora… o sonho dela jamais se tornará realidade.
Uma loba como eu, ignorada pela própria família — como eu poderia pagar por isso?
Meu pai beta nem sequer mandou um curandeiro quando eu estava apodrecendo de corrosão por poeira de prata. O que me faz pensar que ele me daria uma moeda sequer para comprar meu próprio túmulo?
Fiquei em silêncio por um momento… depois sussurrei:
— Eu não preciso mais dele.
Meu irmão mais velho, William, voltou logo depois que desliguei.
Ele se aproximou com uma expressão confusa.
— Túmulo? Do que você tá falando?
Por um segundo, pensei — talvez, só talvez — que ele soubesse de algo. Que ele se importasse.
Mas essa ilusão se despedaçou no instante seguinte.
— Que tipo de joguinho você tá fazendo agora, Jennifer? — Ele disparou. — Fiquei sabendo que você causou o maior escândalo no Conselho dos Lobisomens — só pra arruinar o ritual de transformação da Elsa?
— Até eu sinto vergonha de você. Você envergonhou toda a nossa família.
— A Elsa chorou até desmaiar, se sentindo culpada por causa da sua cena! Você acabou com o grande dia dela!
— Você ao menos entende o quão importante é a primeira transformação pra um lobisomem?
— Se ela não tivesse perdido os pais de sangue quando criança, ela nem teria crescido nessa casa!
— Por que você sempre tem que causar problemas pra ela? Por que não consegue simplesmente ser gentil com ela uma única vez?
Olhei para o rosto furioso de William, sentindo um nó se formar na minha garganta, tão apertado que mal consegui respirar.
Não era eu quem sempre foi ignorada? Sempre tratada como estranha dentro da própria casa?
Sim, a transformação de Elsa era importante. Mas e a minha?
Nenhuma vez — nem uma sequer — participei de uma corrida de lua cheia com a família desde que ela chegou.
Toda vez que prometiam caçar comigo, algo acontecia com Elsa. Uma febre. Uma alergia. Alguma desculpa. E lá iam todos correndo com ela pro posto médico… me deixando pra trás. Sempre.
Desde o dia em que ela entrou nesta casa, eles colocaram tudo nela — atenção, cuidado, amor.
Mas quando eu me transformei pela primeira vez?
Eles esqueceram. Completamente.
Ninguém viu. Ninguém celebrou. Sem ritual. Sem convidados. Nem uma palavra de parabéns.
Mas pra Elsa, convidaram metade da Alcateia. Fizeram um espetáculo.
Olhei fixamente para William, as lágrimas subindo aos olhos, minha voz trêmula enquanto engasgava nas palavras:
— William, você ao menos lembra da primeira vez que eu me transformei?
— Não só todos vocês esqueceram completamente — como também nem se importaram! Ninguém disse nada. Ninguém me perguntou como foi, como eu me senti, ou se eu estava com medo.
— Era pra ser o momento mais importante na vida de um lobisomem… e eu passei por ele sozinha.
Parece que William se lembrou de algo — porque por um instante vi a culpa brilhar nos olhos dele.
Mas suas palavras continuaram frias. Frias como gelo.
— Por que você tá sendo tão mesquinha? — Ele rebateu.
— Se você tivesse simplesmente admitido seus erros e tentado se redimir, acha mesmo que nossos pais ainda estariam bravos até agora?
Nesse momento, a porta da frente se abriu. Eu ouvi suas vozes antes mesmo que entrassem.
Meus pais.
— Como você ousa mencionar sua primeira transformação! — Meu pai rugiu. — Você não tem vergonha!
— Você não merece ritual nenhum — não depois do que fez com a Elsa!
A fúria dele me atingiu como uma onda violenta. Seu lobo estava tão próxima da superfície que eu podia senti-lo — como se quisesse me despedaçar.
— O ritual da Elsa foi totalmente arruinado por sua culpa! Mas ela te culpou? Não. Ela implorou pra gente te perdoar. Chorou tanto que desmaiou!
— E você nem sente um pingo de culpa? Peça desculpas pra ela! Agora!
Elsa saiu de sua tristeza, deu um passo à frente e forçou um sorriso piedoso. Sua voz, mal passando de um sussurro, carregava um traço de compreensão quando ela disse:
— Não precisa pedir desculpas, Jennifer. Mas… será que você poderia fazer aquele bolo de noz? Estou com tanta vontade dele há tempos.
O rosto da minha mãe imediatamente se suavizou, iluminando-se com uma ternura totalmente deslocada.
— Jennifer, veja como a Elsa é bondosa! Ela está te dando uma chance de consertar as coisas. Por que você não aproveita?
Olhei para o sorriso falso de Elsa, minha voz fria como pedra.
— Você não disse que era alérgica a nozes?
— Está tentando me incriminar por tentar te matar? Você insiste pra eu fazer um bolo de noz — só pra poder me acusar de envenenamento?