O ADEUS
Fechei a mala com calma. O zíper deslizou como se selasse uma parte da minha vida que eu nunca mais queria revisitar. Cada dobra de roupa parecia um fragmento da mulher que um dia acreditou no amor, e agora só acreditava em recomeços.
Marie apareceu na porta, como sempre discreta.
— A senhora vai viajar, dona Elara? — perguntou, enxugando as mãos no avental branco.
— Vou sim, Marie. — Respondi com serenidade. — Estou tirando férias, preciso ficar longe de tudo que me faz mal.
Ela hesitou.
— Quer que eu prepare algo para a viagem?
— Não, obrigada, já deixei tudo pronto. — Olhei para ela e acrescentei, com gentileza: — Só preciso de um favor.
A governanta se aproximou, preocupada.
— Diga, senhora.
— Amanhã, bem cedo, chame o motorista e peça para ele levar todas as minhas malas para o endereço que deixei anotado na escrivaninha do meu quarto, todas, nada pode ficar aqui Marie entendeu? Já organizei minha mudança, se ficar algo, você envia junto.
Marie arregalou os olhos.
— Todas as suas coisas, meu Deus, é definitivo?
— Todas, e sim, não voltou nesta casa nunca mais.
Ela mordeu o lábio inferior, tentando disfarçar a apreensão.
— Devo avisar o senhor Adric?
— Não, ele vai agradecer por essa minha decisão— respondi, firme. — Já deixei tudo no quarto dele, tem um envelope lá. Quando ele chegar, estará avisado.
Peguei o passaporte na mesa, o telefone e o bilhete da passagem que havia comprado com o meu próprio dinheiro. Marie permaneceu parada, observando-me em silêncio.
— Boa viagem, senhora Elara. — disse por fim, com voz embargada.
— Obrigada. — Agradeci de coração. — E obrigada por tudo o que fez por mim.
Ela baixou o olhar.
— Eu é que agradeço, dona Elara. Foram dois anos vendo a senhora ser tratada como se não existisse... e mesmo assim, a senhora nunca perdeu a elegância. A senhora foi uma boa patroa, uma mulher justa.
Senti o nó subir à garganta.
Abracei-a.
— E você sempre foi leal, Marie. Obrigada pela sua discrição e por não fechar os olhos para o que via.
Ela me olhou com lágrimas contidas.
— A senhora não volta mesmo?
— Não. — Respondi, decidida. — Para cá, nunca mais como falei antes. Adric fez as escolhas dele, e cumpri o meu tempo nesta casa.
Peguei a mala de rodinhas, ajustei o lenço no pescoço e continuei:
— Se quiser falar comigo, você tem o número do meu telefone. Mas durante as férias, ele vai permanecer desligado. E o endereço que deixei para o motorista... por favor, não entregue a ninguém.
Marie respirou fundo.
— Entendido. — fez uma pausa. — A senhora vai precisar de alguém para trabalhar com a senhora quando voltar?
Sorri de leve.
— Sim, vou precisar pois o meu apartamento é grande, era de minha mãe, é uma cobertura triplex. Mas só quando eu retornar.
— Então, se a senhora me chamar, eu vou trabalhar com a senhora, cumpro o aviso prévio . Não quero continuar nesta casa.
— Está combinado, Marie. Dentro de trinta dias, você já pode estar comigo. A chave do apartamento está sobre a cama. Guarde para mim, peça ao motorista que também não diga o endereço a ninguém. Se alguém perguntar, diga que eu mesma fiz a mudança.
Marie assentiu, emocionada.
— Pode deixar, dona Elara, e boa viagem.
Abracei-a novamente. O cheiro de lavanda do avental dela me trouxe lembranças de quando tudo ainda parecia suportável.
Mas agora, não havia mais retorno.
Desci as escadas devagar, sentindo o som dos saltos ecoando no mármore frio. Cada degrau era uma despedida. Cada passo, um pedaço de mim que eu deixava para trás.
A casa estava silenciosa. As flores do hall principal já começavam a murchar. A fotografia do casamento na parede me observava com aquele sorriso congelado — o retrato de um amor que nunca existiu.
Quando atravessei a porta principal, o vento da madrugada me atingiu como um sopro de liberdade. Fechei o portão e caminhei até o carro.
O motorista abriu a porta, sem fazer perguntas. Apenas carregou minha mala para o porta-malas.
Sentei-me no banco traseiro. Olhei pela janela, vendo o casarão ficar menor, até sumir completamente entre as luzes distantes.
“Adeus, casa que me calou. Agora é a minha vez de viver.”
A estrada parecia respirar junto comigo. O céu, antes escuro, começava a clarear em tons de azul e dourado.
O primeiro raio do amanhecer tocou o vidro do carro, e por um instante, eu sorri.
Não porque estivesse feliz, mas porque finalmente sentia que estava indo na direção certa.
A viagem até o porto duraria pouco mais de uma hora. No banco ao meu lado, o passaporte, o bilhete e o crachá com o novo nome — Lara Velasquez, funcionária temporária em um cruzeiro.
Ninguém saberia quem eu era.
Ninguém me chamaria de senhora Valeforte.
E, pela primeira vez, isso me parecia libertador.
Encostei a cabeça no vidro e fechei os olhos.
Deixei que o movimento do carro embalasse o meu silêncio.
Não havia mágoa — apenas uma estranha paz, o tipo de serenidade que vem quando já não resta mais nada a perder.