A ILHA DA ILUSÃO
O sol de Ibiza derramava-se como ouro líquido sobre o terraço branco do resort. O mar, de um azul impossível, arfava em ondas mansas, e o vento trazia sal e buganvílias. Adric Morial Valeforte repousava na espreguiçadeira. Óculos escuros, taça na mão, o mundo ao redor parecia feito para homens que não erram — ou fingem não errar.
Marla Lancaster sentou-se ao lado dele. O vestido de linho marcava a curva da barriga já avançada. Passou a palma aberta sobre a pele com delicadeza orgulhosa.
— Adric, quando você vai resolver a situação do casamento com a Elara?
Ele não desviou os olhos da linha do horizonte.
— Assim que eu voltar. Você sabe que eu não posso pedir o divórcio. Em hipótese alguma. Se eu pedir, devolvo todo o investimento que salvou as empresas. Foi a cláusula que aceitei quando meu pai me deixou falido. Para preservar a Valeforte, eu precisei casar com ela.
Marla umedeceu os lábios. O brilho do sol dançava nos seus olhos.
— Então quem tem de pedir é ela.
— Exatamente. Se ela pedir o divórcio, nada me é exigido. Ela não perde nada. Eu fico livre. Está escrito. Não há outra saída.
— E nesses dois anos… — Marla o estudou, com uma inquietação que misturava ciúme e consternação. — Ela não percebeu? Não disse nada?
— Percebeu. — Ele pousou a taça, tirou os óculos. O olhar era límpido e frio. — Mas preferiu acreditar que o tempo faria o milagre que nunca existiu. Eu nunca toquei na Elara. Nem vou tocar.
— Mesmo eu publicando as fotos, ela nunca me confrontou. — Marla apoiou o corpo no encosto, pensativa. — Você acredita?
— Ela não é imprudente. Foi avisada para não se voltar contra você. E, de todo modo, ela sabe. — Ele indicou, com um leve movimento de queixo, a barriga dela. — Você não esconde a gravidez.
Marla sorriu de canto.
— Nas postagens, nunca coloco o seu rosto. Só perfis, reflexos, a mão no talher, um relógio. As pessoas perguntam quem é o meu namorado, mas eu não posso te expor. Não quero prejudicar a empresa.
— Eu sei. — Ele tomou a mão dela, com cálculo e ternura medida. — E te sou grato por isso.
Ela encostou o rosto no peito dele, vencida pelo hábito suave daquela proximidade. O mar respirou mais forte. Um veleiro riscou a distância.
— Amanhã nós retornamos. — disse, voltando ao assunto com a praticidade de quem conhece o próprio lugar no tabuleiro. — Preciso voltar à empresa. Tenho muitos relatórios pendentes e a minha assistente, Júnior, ainda não tem competência para assumir tudo sozinha.
— Então treine-a nesses dois meses restantes. — Ele falou sem hesitação. — Ela deve estar pronta para ocupar o seu lugar quando você sair de licença.
Marla assentiu devagar, o polegar desenhando círculos involuntários sobre a barriga.
— Quando o bebê nascer… — a voz saiu baixa, mas nítida. — Você vai ficar comigo?
Adric olhou para ela por um segundo inteiro, como se cravasse uma assinatura invisível.
— Vou. O quarto do nosso filho já está pronto. Organizarei minha agenda para estar com vocês. Mais tempo com você do que em qualquer outra casa.
— Em nossa casa. — corrigiu ela, com doçura convicta.
Ele acenou, sem sorriso.
— Em nossa casa.
O silêncio que veio não foi vazio. Tinha o peso de uma escolha e o custo de um destino. Marla retomou a respiração tranquila e, como para espantar presságios, falou de trabalho.
— Assim que chegarmos, reviso a pauta com os diretores. Deixo tudo documentado. A Júnior precisa aprender a lidar com o conselho. Eu a acompanharei nas apresentações. Em dois meses, ela estará pronta.
— Providencie o cronograma. — disse Adric. — E seleciona o pessoal para cobrir possíveis faltas. Não quero ruídos na transição.
— Eu cuido disso.
As gaivotas giraram alto, como notas agudas num céu de cobre. Marla apertou a mão dele.
— E você… — ela demorou-se na pergunta, como se apalpasse o contorno de uma sombra. — Você se arrepende de ter se casado?
Ele recolocou os óculos. O vidro refletiu um mar impecável.
— Eu me arrependo do que não preserva o nome que carrego, o resto é consequência.
Marla respirou fundo, satisfeita o suficiente para calar outras dúvidas. Alisou o tecido do vestido, ergueu-se com delicadeza e lhe ofereceu a mão.
— Vamos almoçar?
— Vamos — levantou ao lado dela, intacto, como se o mundo inteiro existisse para confirmar sua decisão.
Ao longe, o sol curvou-se um pouco mais sobre a água. O paraíso parecia perfeito. Perfeições, porém, costumam ser frágeis. Ali, entre o brilho e o sal, uma vida se afirmava — e outra, silenciosamente, se desfazia.
O sol já se inclinava sobre o mar quando Adric desceu a escadaria do resort. O último jantar havia sido silencioso, cortado apenas pelo barulho do garfo de prata batendo no prato e pelo som distante das ondas contra as pedras.
Marla Lancaster caminhava atrás dele, vestida de branco, o cabelo preso em um coque delicado. O vestido realçava a barriga que começava a pesar sob o tecido.
Ele esperava o motorista particular que os levaria ao aeroporto.
— Está tudo pronto para a viagem? — perguntou, sem olhar para ela.
— Sim, — respondeu Marla. — As malas já foram enviadas para o avião.
Houve um silêncio.
Ela o observava com aquele olhar de mulher que queria ser compreendida.
— Às vezes, eu chego a sentir pena dela, sabia? — disse enfim. — Da Elara, ela teve que aceitar esse casamento, e só recebeu desprezo.
Ele virou o rosto devagar.
— Pena? — repetiu, seco. — Por quê?
— Porque você fala dela com tanta frieza, amor até parece que você a odeia.
Ele ajeitou o paletó e soltou um riso curto.
— Eu não a odeio. — respondeu, tranquilo. — Eu odeio a situação.
— Que situação?
Ele voltou a olhar o mar, a voz mais baixa e controlada.
— A de ter sido forçado a casar para salvar o império que o meu pai destruiu. Foi isso que me tirou o direito de escolher.
Marla inclinou a cabeça, tentando esconder o desconforto.
— Mas você teve escolha quando ficou comigo. — disse, com leve provocação.
— Ficar com você não foi escolha, — respondeu ele, sem hesitar. — Foi consequência. Você sempre esteve aqui, desde antes da ruína. Eu me casei com ela, mas foi com você que eu vivi.
Marla forçou um sorriso.
— Mesmo assim... eu vejo seu olhar mudar quando fala da empresa. É como se ela fosse um símbolo de tudo o que te prende.
Ele assentiu.
— É exatamente isso. Quando olho para ela, vejo os papéis, os contratos, o dinheiro que me mantém respirando. É isso que eu odeio. Não é a Elara — é o que ela representa.
Ela pousou a mão no braço dele, cautelosa.
— E quando tudo isso acabar?
— Quando ela pedir o divórcio, tudo acaba. — disse, simples. — E nós seremos livres, finalmente.
Marla soltou um suspiro.
— Às vezes, parece que você está cansado de tudo, até de mim.
Ele a encarou por um instante, depois desviou.
— Estou cansado das aparências. É só isso.
Um silêncio pesado caiu entre os dois.
O motorista aproximou-se, abrindo a porta do carro.
— Vamos, — disse Adric, colocando os óculos escuros. — Temos uma viagem longa pela frente.
— E vai ter que me suportar o tempo todo. — provocou ela, sorrindo.
Ele entrou no carro e recostou-se no banco.
— Já suporto há cinco anos. — respondeu, sem emoção.
Marla riu de leve, tentando disfarçar o incômodo.
— E ainda assim, continua ao meu lado.
— Porque é o único lugar onde ainda posso fingir que tudo está sob controle. — murmurou.
O carro partiu devagar pela estrada que levava ao aeroporto. O sol desaparecia no horizonte, mergulhando o céu em tons de cobre e vinho.
Adric manteve o olhar fixo no nada, sentindo apenas o peso da obrigação e o som distante das ondas se apagando atrás deles.
O RETORNO
A noite descia sobre o aeroporto particular de Nova Iorque quando o jato de Adric Morial Valeforte tocou o solo. O relógio marcava dez horas. O voo vindo da Europa havia sido longo, mas ele trazia no rosto a expressão satisfeita de quem finalizara uma sequência de negócios vantajosos.
O motorista o aguardava. A viagem até a mansão foi silenciosa. Pela janela do carro, as luzes da cidade pareciam distantes, irreais — apenas reflexos do mundo de aparências onde ele sempre vivera.
Quando atravessou o portão, o relógio já passava das dez e meia. Subiu os degraus da escada, afrouxando a gravata, com o peso do cansaço e a pressa habitual de quem acredita que tudo o espera no mesmo lugar.
A casa estava em silêncio.
Imaginou que Lara já estivesse dormindo.
Entrou direto no quarto dele. A iluminação suave revelava tudo exatamente como havia deixado — exceto por um detalhe. Sobre a cama, repousava um envelope branco, com uma única palavra escrita à mão: Confidencial.
Adric franziu o cenho.
— O que é isso?
Pegou o envelope. O peso era leve, mas o pressentimento foi imediato. Rasgou o lacre com impaciência. Assim que abriu, o som metálico de algo caindo ecoou no chão de mármore.
A aliança de casamento e o anel de noivado rolaram até seus pés.
Por um instante, ele ficou parado, observando o reflexo dourado sobre o piso frio.
Depois, puxou os papéis e leu rapidamente as primeiras linhas: Petição de Divórcio – Assinada por Elara Montrose Vasquez Valeforte.
— Merda! — rosnou, apertando o papel entre os dedos. — Ela pediu o divórcio antes do prazo.
O coração acelerou. A cláusula do contrato lhe veio à mente como uma sentença: três anos de casamento ininterrupto. Haviam se passado apenas dois.
— E agora? — murmurou, com raiva contida.
Sentou-se na beira da cama. Pegou novamente o bilhete dobrado e releu as palavras escritas por ela.
Leu uma vez.
Depois, outra.
E outra.
Cada linha parecia corroer o controle que ele sempre acreditou ter.
Pegou o celular, tirou uma foto do bilhete e enviou para Marla.
Mensagem: “Quando cheguei, encontrei esse envelope sobre a cama. Vou ver o que está acontecendo, depois te ligo.”
Levantou-se e foi até o quarto de Elara.
Bateu à porta.
Silêncio.
Chamou outra vez.
Nada.
Girou a maçaneta e empurrou a porta. O quarto estava completamente vazio. Nenhuma mala, nenhuma peça de roupa, nenhum som. Apenas o perfume dela — suave, inconfundível — pairando no ar como um fantasma.
Abriu o closet.
Vazio.
Correu os olhos pelo espaço. A penteadeira, que antes exibia perfumes e joias, agora estava limpa. A cama arrumada. A escrivaninha, sem papéis.
— Ela foi embora... — sussurrou, como quem confessa um erro que nunca esperava admitir.
Pegou o telefone novamente e ligou para Marla.
Ela atendeu quase de imediato.
— Adric? — perguntou, curiosa. — O que houve?
— Ela foi embora. — disse, ainda em choque. — Quando cheguei, o quarto estava vazio. Não sobrou nada.
Marla soltou uma risada breve, abafada.
— Que alegria! Você mesmo disse que, se ela pedisse o divórcio, não haveria problema nenhum para você.
Ele respirou fundo, a mandíbula tensa.
— Há um problema, sim. — respondeu. — O contrato previa três anos de casamento. E nós temos apenas dois.
Do outro lado da linha, o silêncio se instalou.
— E agora? — perguntou Marla, finalmente.
Adric passou a mão pelos cabelos, olhando em volta para o quarto vazio, como se esperasse que ela ainda estivesse ali.
— Agora, preciso descobrir onde ela está... antes que algué