Henrique Narrando
O som insistente do meu celular vibrando contra a mesa de cabeceira foi o que me tirou do sono. Demorei um instante para processar onde estava — o livro de autoajuda aberto sobre o peito servia como lembrete irônico daquele esforço inútil para aprender a “relaxar”. Nada daquilo funcionava comigo. Levantei devagar, cumprindo um ritual quase sagrado. O ambiente tinha que estar em ordem — sempre. Um espaço bagunçado significava uma mente bagunçada, e eu não começaria um dia assim, especialmente hoje. Hoje era o dia. O Mendes se aposentava e eu assumia o comando da delegacia. Décadas de serviço, noites mal dormidas e sangue frio me trouxeram até aqui. Não tinha glamour, nem holofotes, só o peso do dever e a responsabilidade. Olhei meu reflexo no espelho. A barba estava um caos, denunciando o cansaço dos últimos dias. Vaidade nunca foi meu forte, mas sei que aparência importa — principalmente para quem carrega um distintivo. Peguei a navalha e tratei do que dava. Não ficou perfeito, mas era o suficiente. Para um policial acostumado a lidar com feridas, aparar pelos era bagatela. Na cozinha, preparei meu café do jeito que gosto: forte e sem açúcar. Gosto de controlar ao menos isso no meu dia. Nem sei o nome da diarista que vem duas vezes por semana. Gente demais em casa sempre me incomodou. Sou metódico, para alguns sou obsessivo — para mim chamo de ordem. E em meio ao caos policial, ordem é sobrevivência. Moro na Vila Olímpia, apartamento pequeno, moderno e silencioso, um bunker contra o barulho do mundo.Terminei o café, lavei a caneca, ajeitei a bancada. Detesto deixar rastros — não só no serviço, mas na vida.Peguei celular, chaves e segui para a delegacia. Entrei direto na sala do Mendes, que hoje seria minha. Bati e ouvi sua voz firme: — Entre. Lá dentro, estavam Marcelo Rocha e Adriana Paiva. Dois amigos que já tinham saído da delegacia e agora estavam na civil. Cumprimentei os dois com um meio sorriso: — Bom dia, Rocha. Paiva.— Pronto para ser chefe? — Marcelo perguntou, com seu jeito brincalhão. — Pronto. Ansioso, mas pronto — admiti, olhando para Mendes — Ele assentiu. — Quando assumi, estava no mesmo lugar que você. Ansioso e com medo de não ter pulso firme o bastante — Marcelo riu. — Mendes teve 30 anos de serviço e ainda está de pé. Foi chefe de respeito. Tenho orgulho de ter servido com ele no E.I.E. — Adriana sorriu discretamente. Marcelo abraçou Mendes, deu tapinhas nas costas, dizendo mais com o gesto que com palavras. — Vou sentir sua falta, velho. — apertou a mão dele antes de sair.Adriana também desejou sorte — Mendes agradeceu e anunciou reunião para repassar ordens. Tudo protocolar, dentro do padrão. Após saírem, acertamos detalhes do cargo e os nomes que precisaria monitorar. Quando o comunicado oficial chegou, fui cercado por cumprimentos. Palmas, sorrisos, tapinhas nas costas. Alguns sinceros, outros por conveniência. Aceitei tudo com educação. Respeito se conquista com ação, não festejos. Dispensei a equipe e convoquei Ivan Barbosa, meu subdelegado novo. Queria resolver a burocracia logo: funções, relatórios, hierarquia. Cada coisa em seu lugar desde o primeiro dia. Ivan já sabia minha fama: rígido, exigente, difícil. Pode ser. Mas após duas semanas de trabalho, ele entendeu que meu “gênio forte” era profissionalismo. Não arrogância — método. Passo a passo, sem espaço para dúvidas. Ele nunca quis invadir meu espaço, só seguir o ritmo que eu demandei. Discreto, falava pouco e agia muito. Disse que eu parecia o irmão mais velho dele. Não quis saber mais. Não crio laços para não me distrair. Enquanto seguíamos para minha sala, Raquel Pacheco e seu parceiro Estêvão apareceram no corredor. Tinham acabado de voltar de missão. Sabiam da troca de comando e vieram cumprimentar: — Parabéns, chefe — disse Raquel com meio sorriso, respeitando, mas sem se curvar. — Obrigado, sargento. — disse, sentando. — Imagino que não vieram só dar parabéns. Raquel trocou um olhar rápido com Estêvão. — Temos relatório novo da comunidade Madalena — Suspirei fundo. — Já esperava. Esse sempre foi o ponto fraco do Mendes — Raquel confirmou. — Ele segurou controle por um tempo, com uma trégua. Mas agora os traficantes cresceram novamente. — Viraram erva daninha — completou Estêvão, frustrado. Raquel abriu a pasta e detalhou: — Infiltramos e detectamos três líderes de facção recentes. Dois irmãos gêmeos: Marco e Pedro — Valet e Coringa. O terceiro é inimigo deles: David, o Pivô. — Disputa por território? — perguntei. — Exato. Dois homens do Pivô foram executados pelos gêmeos. A comunidade está aterrorizada. — Cruzei braços. — Vamos montar um plano e cortar essa ameaça pela raiz. Essa gente já sofreu demais — Raquel sorriu. — Sabíamos que pensaria assim. Boa sorte, delegado. — E saiu com Estêvão — Ficamos eu e Ivan. Passei pendências e avisei que me afastaria para planejar a operação. Ele ouviu, anotando tudo. Gosto de gente que age mais que fala. Convoquei E.I.E. para reunião. Expliquei a situação, selecionei snipers, táticos, sargentos frios o suficiente para encarar o inferno sem tremores. A missão para invadir Madalena não seria moleza, mas nunca busquei o caminho fácil. Equipe dispensada, voltei ao circuito de sempre: atendimento, despachos, ordens, investigações atrasadas. A rotina virou borrão. Olhei no relógio: passava das seis e meia. Hora de entregar o plantão ao Ivan. Peguei o paletó, pensei outra vez na barba que prometi aparar. Era banal, mas após encarar um dia inteiro de papéis e criminosos, cuidar de mim soava como disciplina. Fui à barbearia de sempre, onde o barbeiro fazia o serviço rápido e sem conversa. Fechei os olhos, deixei a navalha trabalhar. No espelho, o reflexo me agradou. Paguei e saí. Ainda cedo. Decidi jantar no bar-restaurante onde costumava ir: comida simples, música ambiente e o silêncio necessário para pensar. O que eu não sabia era que aquela noite... tinha planos diferentes para mim. Os acontecimentos que se seguiram mudariam minha rotina — e talvez a rota da minha vida.