A clareira estava silenciosa, como se a floresta, acostumada ao som de sangue e uivos, não soubesse como reagir ao inesperado: paz. Pela primeira vez em décadas, os lobos da alcateia Ashford haviam assistido a algo além de uma luta pela supremacia — haviam visto uma escolha feita por amor. Por mudança.
Lia caminhava entre eles como uma estrela recém-nascida. Ainda havia feridas em seu corpo, cicatrizes abertas pela batalha contra seu pai, mas sua postura era firme, o olhar decidido. Etan a seguia de perto, respeitando o ritmo dela, ainda se acostumando com aquele novo mundo. — Eles realmente te aceitaram — ele murmurou, admirado. — Por agora — respondeu Lia. — Mas liderar é mais do que vencer uma luta. É manter a paz. E paz... nunca vem fácil. Helena, sua tia, uma loba de olhos duros e cicatrizes antigas, a interceptou entre as árvores. — O conselho quer se reunir. Há questões a resolver. Os Darion ainda exigem satisfação. — Eles não têm mais autoridade sobre nós — disse Lia, parando diante dela. — A aliança com os Darion foi feita sem o consentimento da alcateia. E agora a alcateia tem uma nova Alfa. Helena ergueu uma sobrancelha. — Veremos se consegue manter esse título. O sangue puro não é esquecido tão facilmente. Lia não recuou. — Nem o sangue derramado. — E passou por ela sem olhar para trás. --- Naquela noite, uma reunião foi convocada. O Salão da Pedra Velha estava iluminado com tochas vivas e ecos de vozes abafadas. Etan se manteve nas sombras, ouvindo, absorvendo, tentando entender um mundo que ainda o rejeitava. — Você quer interromper séculos de tradição? — Ulric, um dos anciãos, bradou. — Sem caça, sem rituais, sem sangue? — Quero recomeçar — disse Lia. — Não somos mais feras escondidas na noite. Podemos viver entre eles. Escolher nossas alianças. Construir algo novo. — E se os humanos nos caçarem? Como no passado? — Então lutaremos. Mas lutaremos por sobrevivência, não por diversão. Não por domínio. Um silêncio pesado caiu. Finalmente, uma voz feminina se ergueu — Miriam, a mais velha dos anciãos, que raramente falava. — Ela fala como uma Alfa. — Sua voz era baixa, mas firme. — E se ela falhar... o sangue nos lembrará. Lia assentiu. Não como quem agradece, mas como quem assume o peso da promessa. --- Na madrugada, Lia e Etan voltaram à cabana escondida na floresta. Pela primeira vez em dias, estavam sós. — Isso não vai ser fácil — ele disse, observando o luar filtrado pelas frestas do teto. — Nunca foi — ela respondeu, sentando-se ao lado dele. — Mas agora tenho alguém com quem dividir a carga. Ele a olhou. — Você ainda não sabe se pode confiar em mim, não é? Ela sorriu. — Confiança se constrói com tempo... e canções. Ele pegou o violão. — Então deixa eu te mostrar algo. Escrevi essa enquanto você dormia depois da batalha. A melodia era simples, mas carregada de emoção. A voz dele preencheu o espaço como se cada nota limpasse as feridas que Lia carregava. Era uma canção de esperança. De liberdade. De amor. Quando terminou, ela o beijou. — Talvez você seja o Alfa do meu coração — sussurrou. Ele riu. — Isso soa como uma ameaça. — Soa como um voto. --- Nos dias seguintes, Lia começou a reformular as estruturas da alcateia. Visitou cada família, ouviu cada membro, reformou os círculos de decisão. Criou um código de conduta, proibindo a caçada de humanos, organizando treinamentos que envolviam controle e equilíbrio, não violência gratuita. Alguns resistiam. Outros apenas observavam. Mas poucos ousavam confrontá-la — não depois da forma como dominou seu pai. Etan, por outro lado, virou símbolo de um novo tempo. Começou a dar aulas de música para os jovens da alcateia. Criava espaços de expressão para os híbridos, os filhos de humanos e lobos, que antes eram rejeitados por ambas as partes. — Nunca pensei que me veria tocando violão para lobisomens — comentou ele certo dia. — Acho que sou o músico mais sortudo — ou mais maluco — do mundo. Lia riu, orgulhosa. — Talvez as duas coisas. Mas o equilíbrio recém-construído estava por um fio. --- Na terceira lua desde sua ascensão, uma sombra retornou: os Darion. Eles chegaram em cavalos negros, armaduras com símbolos antigos gravados em prata. No centro, Ajax Darion, o herdeiro da casa rival. Os olhos vermelhos como brasas. — Vim buscar o que me foi prometido — disse ele, diante da clareira. — Lia Ashford é minha por acordo de sangue. — Acordos quebrados não têm mais validade — respondeu Lia, sem hesitar. — Então eu a tomo pela força. Antes que qualquer lobo se movesse, Etan saiu da multidão e se postou ao lado de Lia. — Vai ter que passar por mim primeiro. Ajax olhou para ele com escárnio. — Um humano? Você trouxe um humano como escudo? — Ele não é escudo. É companheiro. E se você tocar nele... vai descobrir o que acontece com quem desafia uma Alfa. Lia avançou. Não se transformou. Apenas encarou Ajax com olhos ardentes. — Você não me toma. Ninguém mais me toma. Esta alcateia tem nova liderança, e novas regras. Volte para suas montanhas, Ajax, antes que seu nome vire pó sob nossas patas. Por um instante, tensão. Os Darion prepararam as lanças. Mas então, do meio da floresta, Damian Ashford surgiu. Ferido, curvado, mas com os olhos em chamas. — Minha filha fala por mim. E por nossos ancestrais. — Sua voz era um trovão. — Qualquer que ouse tocar nela... morrerá. Ajax rangeu os dentes. Mas não atacou. Virou-se. — Isso não acabou. — Que comece quando quiser — retrucou Lia. --- Naquela noite, a alcateia celebrou. Canções foram tocadas. Uivos se misturaram a melodias humanas. Crianças dançaram ao redor da fogueira. Velhos sorriram. E Etan, com Lia em seus braços, sussurrou: — Quando tudo isso começou... eu só queria cantar em paz. Agora... quero cantar para o mundo com você ao meu lado. Ela se deitou em seu peito. — E eu quero liderar com o coração... enquanto ele for teu. A lua brilhou acima deles, testemunha silenciosa de um novo tempo. Não mais feito de medo, mas de escolha. E entre lobos e canções, Lia e Etan descobriram que a liberdade... era uma música que só os corajosos sabiam cantar.