O relógio ainda marcava 5h40 quando Isabela Duarte saltou do ônibus lotado no centro financeiro da cidade. O céu carregava um tom violeta escuro, transição entre a madrugada e o dia, e a brisa fria da manhã batia em seu rosto, acordando-a por completo. Apertou o passo ao descer a avenida larga de paralelepípedos, com os arranha-céus espelhados ao redor começando a refletir a luz do amanhecer.
Parou diante do edifício prateado e colossal da Constellation Global, uma empresa de tecnologia e investimentos que dominava manchetes e discussões em todos os cantos do país. Não era a primeira vez que Isabela via aquela torre de vidro e aço reluzente, mas era a primeira vez que entraria nela. Um arrepio subiu por sua espinha — não de frio, mas de receio. Vestia o uniforme azul-marinho da firma terceirizada de limpeza: calça reta, camisa com o logotipo bordado sobre o peito e um par de tênis discretos. Carregava consigo uma bolsa simples e um crachá provisório preso à gola. Cabelos presos em um coque baixo, maquiagem quase nula, e um brilho nos olhos que misturava nervosismo e determinação. Ao passar pela porta giratória, o saguão da Constellation a engoliu com seu silêncio gelado e requintado. Mármore branco no chão, obras de arte minimalistas nas paredes, e um aroma de café fresco no ar. O porteiro noturno, de terno impecável, apenas assentiu com a cabeça e indicou o elevador de serviço. No 12º andar, foi recebida por Marina, a supervisora da equipe de limpeza. Uma mulher de seus cinquenta e poucos anos, firme e cordial, que a apresentou ao restante do time e explicou a rotina com a precisão de quem fazia aquilo há décadas. — Aqui a gente começa pelos banheiros e copas — disse, mostrando o quadro com os nomes e as tarefas. — Depois os corredores, as salas executivas só depois das oito, quando os diretores começam a chegar. Evita passar aspirador nessa hora. O barulho incomoda. Isabela prestava atenção a tudo. Enquanto caminhava pelo corredor principal, notou as salas de vidro com mesas modernas, cadeiras ergonômicas e monitores enormes. Algumas estavam vazias; outras já começavam a se encher de gente — homens e mulheres de terno, pastas de couro, mochilas de marca e celulares colados ao ouvido. Na primeira copa que entrou para repor o café e organizar as xícaras, ouviu vozes abafadas no corredor. — Você viu a nova faxineira? — murmurou uma jovem loira, usando saltos altos e tailleur. — Parece tão… deslocada. — É nova. O jeito que ela olha tudo… como se estivesse vendo outro mundo — disse outra, rindo baixo. Isabela fingiu não ouvir. Manteve-se em silêncio, respirando fundo. Não era novidade ser julgada à primeira vista. Sua vida inteira, de fato, fora uma sucessão de portas fechadas, olhares enviesados e tentativas de provar que merecia estar onde estava. Mas ali, no ambiente corporativo polido e formal da Constellation, os olhares tinham outro peso. Eram mais disfarçados, mas não menos duros. Um dos executivos passou ao seu lado e, mesmo sem dizer uma palavra, olhou-a de cima a baixo com estranheza. Isabela se abaixou para recolher um papel caído no chão. Quando se levantou, ele ainda estava olhando, como se tentasse entender o que ela fazia ali. Mais tarde, enquanto limpava os vidros de uma das salas de reunião, ouviu um grupo conversando sobre ações, fusões e estratégias de mercado. Um deles, um homem de barba bem feita e gravata azul escura, lançou um olhar breve em sua direção. Não disse nada, mas sua expressão era a mesma: curiosidade, misturada a um leve incômodo. “Como se eu fosse um elemento fora da equação deles”, pensou Isabela. Marina a chamou pouco depois, elogiando o capricho com que deixara a copa. — Gosto de gente que não precisa de vigilância — disse, entregando-lhe um pano limpo. — Os diretores têm olhos em tudo. Até na gente. Mas você vai se acostumar. Eles olham, mas não veem. No almoço, sentou-se sozinha na área reservada aos funcionários da limpeza. A conversa ao redor era sobre filhos, ônibus lotados, boletos e vícios da vida dura. Era seu mundo — um que ela conhecia bem, mas do qual queria, aos poucos, se distanciar. Não por vergonha, mas por sonho. Observava, em silêncio, os executivos almoçando no refeitório espelhado do outro lado da divisória de vidro. Um lugar com comida gourmet, guardanapos de pano e sucos naturais em copos de vidro. Era como assistir a outro universo coexistindo com o seu, separado apenas por uma parede translúcida. À tarde, durante a limpeza de um dos escritórios do andar executivo, encontrou um papel esquecido sobre uma mesa: um esboço de organograma com siglas e nomes. Anotou mentalmente um deles: Gabriel Fontes — Diretor de Inovação. Não sabia por quê, mas algo naquele nome parecia importante. Talvez fosse a maneira como ele aparecia circulado com caneta vermelha. Saiu da sala com cuidado, fechando a porta devagar. A caminho do depósito, cruzou com um homem alto, de cabelos grisalhos, vestindo um terno escuro e sapatos brilhando. Ele olhou para ela com os olhos semicerrados, como se a estivesse medindo. — Boa tarde — disse Isabela, educadamente. O homem a encarou por um instante antes de responder com um aceno de cabeça. Depois continuou seu caminho sem dizer palavra. Ela o observou por mais alguns segundos, até que ele virou o corredor e desapareceu. No final do dia, enquanto trocava de roupa no vestiário, sentiu as pernas doerem, mas o coração batia em um ritmo diferente: como se algo estivesse por começar. Havia entrado como uma simples faxineira. Mas sentia que aquele prédio escondia mais do que gráficos e reuniões — havia algo pulsando por trás da perfeição daquele ambiente, e ela, mesmo que por acaso, agora fazia parte daquilo. Enquanto caminhava rumo ao ponto de ônibus, Isabela olhou para trás. A torre da Constellation refletia o dourado do fim do dia, e por um momento, ela teve a impressão de que o prédio também a observava. Não com julgamento, mas com expectativa. E, sem saber exatamente por quê, ela sussurrou para si mesma: — Estou pronta.