Eu demorei a assumir… mas sempre soube que Isabela tinha um lugar nos meus olhos. Talvez fosse difícil admitir, principalmente depois de anos sustentando um desprezo frio, quase ensaiado, como se fosse uma armadura contra qualquer vulnerabilidade. Mas no fundo… lá na época do colégio, eu cheguei a pensar nela como alguém especial. Não era uma paixão declarada, nem mesmo algo que eu entendesse completamente na época. Era mais como uma inquietação silenciosa, uma curiosidade que crescia sem pedir licença.
Era curioso. Ela se escondia nas últimas fileiras da sala, sempre com os cabelos caindo sobre o rosto, como se quisesse se camuflar no próprio silêncio. Os cadernos dela viviam cheios de desenhos — traços delicados, sombreados intensos, mundos inteiros que ela criava e guardava só para si. Nunca mostrava a ninguém. A maioria dos colegas nem lembrava o nome dela. Isabela era, para todos os efeitos, invisível. Mas eu… eu reparava. E isso me assustava.
— “Você está olhando demais pra ela, Pedro.” — Felipe, meu melhor amigo, comentou um dia, cutucando meu ombro durante a aula de matemática, com aquele sorriso malicioso que ele sempre usava quando queria me provocar.
— “Não estou, não. Para com isso.” — resmunguei, virando o rosto, tentando disfarçar o calor que subia pelo meu pescoço. — “Tá sim. Quem diria… o gênio dos Santos com queda pela garota invisível.”Fingi indiferença, como sempre. Mas Felipe tinha razão. Eu olhava. E não era só com os olhos — era com uma atenção que eu não dedicava a mais ninguém. Isabela me intrigava. Ela parecia viver em outra frequência, como se carregasse um mundo próprio dentro de si, um mundo que ninguém mais se dava ao trabalho de explorar.
Agora, tantos anos depois, ao vê-la como mãe da minha filha, aquelas memórias vinham à tona como um fantasma que eu não sabia se queria enxotar ou acolher. Era como se o tempo tivesse dado voltas demais, e eu estivesse preso entre o passado e o presente, sem saber exatamente onde pisar.
Ana dormia no banco de trás do carro enquanto eu dirigia pelas ruas iluminadas da nova cidade. Às vezes, parecia que o coração dela batia dentro do meu, como se nossas emoções estivessem entrelaçadas de um jeito que eu nunca tinha experimentado antes. E foi nesse silêncio, quase sagrado, que, do nada, ela perguntou:
— “Papai… a mamãe já veio aqui quando era pequena?”
Respirei fundo, tentando encontrar uma resposta que não doesse.
— “Não, meu amor. A mamãe ficou no nosso país. Ela está cuidando das nossas coisas por lá.”Ana franziu a testa, pensativa, e depois disse com a naturalidade das crianças, aquela pureza que desmonta qualquer defesa:
— “Mas você gosta dela, né? Da mamãe?”
Aquela pergunta me atravessou como uma lâmina. Não podia mentir descaradamente, mas também não podia dizer a verdade nua e crua. Era um campo minado emocional.
— “A mamãe é… especial. Sempre foi.” — respondi, olhando para frente, como se a estrada pudesse me oferecer alguma fuga.
Ana sorriu, satisfeita. Para ela, aquela resposta bastava. Para mim, não. Para mim, era só o começo de uma avalanche.
Mais tarde, quando a coloquei na cama, fiquei a observá-la dormir. E pensei em Isabela. Pensei em como, no colégio, ela mordia o lábio quando estava nervosa. Pensei em como sempre parecia carregada de uma tristeza que ninguém se importava em notar, mas que eu, de alguma forma, enxergava. Era como se ela carregasse o peso do mundo nos ombros, e eu quisesse, mesmo sem saber como, aliviar um pouco daquela carga.
Talvez eu já tivesse gostado dela. Talvez ainda gostasse. Talvez o que eu sentia fosse algo que nunca deixou de existir, apenas ficou adormecido, esperando um motivo para despertar.
Mas admitir isso agora era uma guerra que eu não sabia se queria enfrentar. Não com Ana tão pequena. Não com tantas feridas ainda abertas.Deitei-me, mas o sono não veio. As lembranças não me deixaram em paz.
E foi nessa madrugada, ouvindo o respirar calmo de Ana no quarto ao lado, que percebi: minha filha tinha o poder de despertar sentimentos que eu jurei ter enterrado para sempre. E talvez, só talvez, fosse hora de parar de fugir deles.