Os dias passavam lentamente dentro da mansão Montanari, como se o tempo ali obedecesse a outra lógica. Nada era rápido, nem as palavras, nem os olhares, nem os sentimentos.
Comecei a me acostumar com os horários rígidos, os olhares calados dos empregados e o modo frio com que Vittorio me tratava, como se eu fosse uma peça fora do lugar em um tabuleiro cuidadosamente montado. Elena, com sua voz calma e postura controlada, era a única que se aproximava o suficiente para oferecer algo parecido com orientação. Ainda assim, suas palavras vinham sempre cercadas por entrelinhas, como se cada conselho escondesse um aviso que eu ainda não sabia decifrar.
Mas a presença de Enzo, me mantinha sempre em alerta. Ele não precisava dizer muito. Cada aparição sua carregava um peso que eu sentia nos ossos. Um magnetismo silencioso, desconfortável e atrativo. Suas palavras, quando vinham, tinham um tom arrastado, carregado de significados ocultos, até seu silêncio era gritante e desafiador. Evitar Enzo era impossível. E talvez parte de mim nem quisesse mais tentar.
Nos primeiros dias, nos cruzávamos casualmente, no corredor, no jardim, na biblioteca. Mas com o tempo, percebi que aquilo não era acaso. Era cálculo, ele aparecia nos momentos certos, nos lugares certos, como quem estuda o comportamento de um animal que acabou de entrar em um novo habitat.
E eu, sem perceber, estava sendo domada ou treinada.
Naquela tarde abafada, o sol mal conseguia atravessar a névoa quente que pairava sobre a propriedade. O ar estava pesado, carregado de jasmim, a flor que crescia em abundância nos fundos da mansão, em um jardim reservado onde raramente alguém ia.
Talvez por isso eu tenha me sentido atraída para lá.
Precisava de silêncio, de ar, de espaço para respirar sem ser medida. Caminhei pelo caminho de pedras brancas que levava ao jardim dos jasmins. As flores explodiam em tons de branco e amarelo, o perfume era quase enjoativo, mas melhor do que o ar rarefeito dos salões fechados.
Sentei em um banco sob uma treliça coberta por trepadeiras. Fechei os olhos por alguns segundos, tentando esvaziar a cabeça, mas o nome Enzo, latejava em mim como febre.
E como se eu tivesse invocado a presença dele com o pensamento, ouvi os passos lentos e precisos, aproximando-se sobre as pedras como um predador que não tem medo de ser ouvido.
Não precisei me virar.
– Fugindo da rotina, Signorina? – disse ele, com aquela provocação arrastada que se colava na pele como calor.
– Apenas tentando respirar. – respondi sem olhar para trás, fingindo mais calma do que sentia.
Ele continuou andando até parar atrás de mim. O silêncio entre nós era mais carregado do que qualquer conversa. Meu corpo inteiro ficou tenso, senti seu olhar nas minhas costas, quente como o sol que já não conseguia atravessar as nuvens.
– Aqui dentro, Anna, é difícil respirar. – murmurou ele, a voz tão próxima que parecia escorregar por minha nuca.
Virei lentamente o rosto, e lá estava ele. Impecável mesmo sob o calor sufocante da Toscana. A camisa branca arregaçada nos braços, os primeiros botões abertos, as primeiras gotas de suor desenhavam o contorno da clavícula e do pescoço, e seus olhos, estavam ainda mais escuros sob a luz filtrada pelas folhas, não conseguia conter e me perdia toda vez que olhava aqueles lindos olhos verdes penetrantes.
Ele estava perto demais. Tão perto que bastava um movimento, um impulso, e nossos lábios se tocariam.
- Talvez você seja o motivo. – a frase saiu antes que eu pudesse pensar
Ele não reagiu de imediato, apenas me observou, longamente. Como se eu fosse um enigma que ele começava a entender e a desejar.
Então estendeu uma mão e tocou uma mecha do meu cabelo. Puxou-a com delicadeza entre os dedos e a deixou escorregar devagar, colocando-a atrás da minha orelha. O gesto foi lento, calculado. Como tudo nele, mas quando seus olhos voltaram aos meus, havia algo diferente, um incêndio quase incontrolável.
Depois, seus dedos pousaram em meu rosto, polegar sobre meus lábios. A pele dele era quente, os olhos semicerrados. Ele respirava devagar, como se estivesse resistindo ao próprio desejo. Meu coração batia em ritmo descompassado, e senti que o chão sob meus pés não existia mais.
– Você não faz ideia do jogo em que entrou, Anna... – disse ele, a voz rouca como uma promessa quebrada. – Mas já está jogando. – completou, com um leve toque de ironia nos olhos.
E então, como se nada tivesse acontecido, deu um passo para trás. Seus dedos tocaram os meus se soltaram como fumaça. Virou-se lentamente e começou a se afastar.
Sem se despedir, sem sequer olhar para trás.
Fiquei ali, imóvel, com os lábios ainda queimando pelo toque dele. Meu corpo inteiro reagia como se tivesse sido puxado para uma tempestade e deixado no centro dela. O peito subia e descia com dificuldade, como se só agora eu lembrasse como respirar.
Quando ele desapareceu atrás das colunas, finalmente soltei o ar. Era como se ele tivesse sugado o oxigênio dos meus pulmões.
Eu odiava admitir. Mas Enzo Montanari tinha um efeito sobre mim que me deixava exposta. Vulnerável. Cada vez que ele chegava perto, minha razão fraquejava. E algo dentro de mim, algo instintivo e quase primitivo, queria mais, queria entender, queria ceder.
Mas ao mesmo tempo, algo em mim gritava, “ isso é perigoso ”. E mesmo assim, eu me via seguindo o som desse perigo com os olhos fechados.
Nos dias seguintes, tentei evitar cruzar com ele. Mas a mansão parecia rir da minha tentativa. Toda vez que eu pensava ter criado distância, lá estava ele. Uma sombra um sopro, um olhar.
Enzo me observava como quem analisa pontos fracos. Não precisava se aproximar fisicamente. O olhar bastava. Um simples cruzar de olhos bastava para me deixar em alerta ou em chamas.
Numa noite em que a casa parecia ainda mais silenciosa, o corredor do andar superior ficou vazio por alguns minutos. E ali, no reflexo do vitral, vi o vulto dele parado. Observando., não falou nada.
Mas o modo como permaneceu ali, imóvel, dizia tudo.
Ele me queria dentro do jogo.
E o pior, eu já estava.
Não sabia quais eram as regras. Não sabia o que se apostava. Mas a cada troca de palavras, a cada silêncio partilhado, uma fissura se abria dentro de mim.
E dentro dessa fissura, nascia algo irreversível. Algo que crescia entre o certo e o proibido. Algo chamado desejo.