A manhã seguinte chegou envolta por um cinza espesso, o tipo de luz opaca que parece tornar tudo mais frio. Acordei com os lençóis revirados, o corpo pesado, como se tivesse carregado o peso de todos os olhares da noite anterior.
O rosto de Enzo me perseguia mesmo com os olhos fechados, aquela forma de olhar sem palavras, sem sorrisos, mas carregada de algo denso, como se ele conhecesse partes de mim que eu mesma não conhecia. A tensão entre nós não tinha nome ainda, mas existia, pulsava e se escondia sob cada gesto contido que trocávamos.
Me vesti em silêncio, tentando parecer menos afetada do que me sentia. Sabia que, naquela casa, até o modo como eu amarrava os cabelos poderia ser observado. Tudo era medido, pesado e julgado.
Desci as escadas com passos controlados, guiada por um dos empregados. Um homem de semblante impassível, que falava pouco e parecia sempre presente, como uma sombra contratada.
Ao chegar na sala do café, encontrei apenas Vittório sentado à mesa, cercado por porcelanas brancas e jornal aberto como um escudo.
- Bom dia Anna, dormiu bem? - ele perguntou, sem tirar os olhos da notícia.
- O suficiente. - Respondi, mesmo que a resposta fosse mentira.
Sentei devagar, os olhos percorrendo o ambiente como um animal novo em território desconhecido. A mesa estava impecável, como tudo ali. Frutas cortadas milimetricamente, talheres alinhados como soldados, mas mesmo com tanta perfeição, eu não sentia fome. Sentia apenas a presença incômoda de mim mesma naquele lugar que ainda me rejeitava em silêncio.
Nos dias que se seguiram, a rotina começou a se formar, ou melhor, a me moldar. Elena era quem me orientava, sempre com aquele tom brando que escondia algo mais rígido. Mostrou-me os lugares da casa onde eu podia circular, como quem delimita território a um novo mascote.
Lugares belíssimos, mas frios. Cada cômodo parecia conter história demais, e todos me lembravam o tempo inteiro de que eu não fazia parte dali. E a ala leste, essa era mencionada com mais cuidado. Nunca explicitamente proibida, mas como uma ameaça velada, não vá até lá.
Mesmo tentando agir com naturalidade, eu sentia cada olhar. Os passos atrás de mim, os sussurros abafados quando eu passava. Eu era uma presença incômoda, embora ninguém dissesse isso abertamente.
E Enzo surgia quando eu menos esperava. Sempre no limite entre a presença casual e a vigilância calculada. Nos corredores, nos jardins, às vezes na biblioteca, sem abrir um livro sequer, apenas ali, me observando. E havia algo no jeito que ele me olhava que me desconcertava mais a cada dia.
Era um olhar que despia, que incomodava e atraía. Que dizia "eu vejo você" sem uma palavra sequer.
Lembro de uma tarde nos limoeiros. Estava sentada num banco de pedra, tentando sentir algo além da estranheza. Ele surgiu atrás de mim, como uma sombra que não fazia barulho.
- Está se acostumando Anna? - perguntou, com aquela voz baixa e firme que parecia prender o ar ao redor.
- Ainda tentando entender as regras. - respondi, sem virar o rosto.
- Algumas regras são silenciosas, mas você vai sentir quando cruzá-las. A casa vai lembrar.
Aquilo não era um conselho. Era um aviso.
- E se eu não me importar com o que a casa lembra? - desafiei, sem pensar.
Senti o movimento dele por trás. Um passo apenas, mas o suficiente para sentir sua presença quente nas minhas costas.
- Então a casa vai fazer você se importar.
Dito isso, ele partiu, deixando ali o calor do que havia dito, o arrepio e o desconforto de suas paravras.
Nos dias seguintes, evitei estar sozinha com ele. Mas ele, não parecia evitar nada. E cada vez que nossos caminhos se cruzavam, a tensão aumentava. Aquilo era um jogo? Uma provocação? Ou só mais um tipo de domínio, típico de homens como ele?
Eu não sabia ainda o que, mas sabia que algo em mim estava mudando. Não pela casa, não por Elena, nem por Vittório, mas por Enzo.
A noite se arrastava silenciosa quando me levantei da cama, calçava meus chinelos silenciosamente, algo naquela casa me deixava inquieta, a sensação ainda de ser observada mesmo que sozinha. Um ruído distante, chamou minha atenção, então segui o som, atravessando o corredor não permitido, a ala leste.
Meu coração batia acelerado, mas caminhei em passos firmes, abri uma das portas e me deparei com outra biblioteca imensa, paredes forradas de livros e uma lareira ainda acesa, sentado em uma das poltronas de couro, com um como de uísque na mão, estava Enzo.
- Você não deveria estar aqui. – disse ele, sem sequer virar o rosto.
Senti meu sangue gelar, como se uma lâmina congelante me atravessasse.
- Eu ouvi um barulho, pensei que alguém estivesse em perigo.
Ele riu, um riso curto e sem humor.
- E se estivesse?
Me aproximei devagar, meus olhos fixos nele, não sabia explicar o porquê o enfrentara daquela maneira, talvez fosse a sensação de que eu precisava encarar aquele olhar.
- Pelo que vejo, você parece ser o perigo - murmurei, mais para mim do que para ele.
Enzo levantou o rosto, seus olhos verdes encontraram o azul profundo dos meus olhos como em um ponto de colisão, mais uma vez.
- Talvez eu seja mesmo um perigo.
O silêncio se estendeu, carregado por uma adrenalina, eu tentava desviar, mas não conseguia, então ele se levantou, deu dois passos em minha direção, me prensando contra a parede de livros, colocou a mão acima da minha cabeça, ficando colado ao meu corpo, que fervia sem explicação e próximo o suficiente do meu rosto.
- Está com medo, pequena Anna – disse Enzo com um sorriso atrevido no canto dos lábios.
- De você? Não, mas não nego que tem algo em você que me intriga também. – falei encarando seus olhos.
Enzo me encarou profundamente, por alguns segundos pensei que fosse me beijar, nossos lábios estavam a centímetros um do outro, mas então ele sorriu novamente, presunçoso.
- Vá dormir, Anna. Esta casa já tem fantasmas demais. – disse ele se afastando de mim
Eu não sabia se corria ou ficava parada ali olhando aqueles olhos que me hipnotizaram, fiquei por uns segundos imóvel, então meu juízo falou mais alto, sai da biblioteca e voltei para o quarto, com o coração acelerado e cheia de enigmas na cabeça a resolver, Enzo havia despertado algo que eu não sabia ainda dizer, mas o desejo era inegável.