Sábado.
Um dia oficialmente destinado ao descanso. Mas o descanso não veio. Desde que acordei, já tinha arrumado os armários, reorganizado minha gaveta de meias por cor (quem faz isso?), limpei a geladeira e fiz duas tentativas frustradas de me concentrar num livro. Tudo pra evitar pensar nele. Mas bastava fechar os olhos por mais de dois segundos e o cheiro dele voltava. O calor da respiração dele no meu ouvido. A voz baixa, controlada. Aquilo não tinha sido só uma reunião. Aquilo tinha sido... sei lá. Um ataque coordenado aos meus nervos. Eu estava completamente sozinha no meu apartamento de 38 metros quadrados, vestindo um pijama largo e segurando uma caneca de café frio. Me sentia... ridícula. Meu celular vibrou no sofá. Clara: "Garota, vem fazer as unhas comigo. Preciso de fofoca, de lixar os calcanhares e de ignorar os boletos." Sorri. Só Clara pra escrever isso antes das 10h da manhã com entusiasmo genuíno. Eu: "Não sei se estou com energia social hoje..." Clara: "Energia social? Amada, tu vai sair dessa caverna. Te dou 20 minutos. Tô te buscando." Suspirei e fui trocar de roupa. Talvez conversar sobre qualquer coisa sem ser Dante Alveron fosse exatamente o que eu precisava. --- Meia hora depois, estávamos sentadas em duas poltronas massageadoras, com os pés mergulhados em bacias de água morna e sais coloridos. O salão era pequeno, meio escondido entre uma lavanderia e um mercado coreano, mas tinha o cheiro de lavanda, ventiladores barulhentos e três senhoras tagarelas fazendo as unhas no fundo. Clara, como sempre, já estava contando histórias. — Então eu disse pro gerente: "ou você troca essa impressora que parece ter sido amaldiçoada por uma bruxa em 1920, ou sou eu quem vai quebrar ela e alegar insanidade temporária." A pedicure dela gargalhou. A minha apenas ergueu uma sobrancelha e continuou lixando meu calcanhar como se estivesse lidando com um bloco de cimento. Eu ria, mais pela forma como Clara gesticulava do que pela história. Mas aí veio a pergunta. — Então... — ela disse com um sorrisinho, virando levemente pra mim — como foi aquela reunião misteriosa com o grande e poderoso chefão? Tossi. Literalmente. Quase engasguei com o chá gelado que estava bebendo. — Reunião normal — tentei dizer, sem encarar. — Hm. Normal, diz ela — Clara virou para a pedicure. — Você já viu uma mulher tossir, engasgar e corar só de lembrar de uma reunião? Eu não. A pedicure apenas riu e olhou para mim com curiosidade. — Nada demais aconteceu — insisti, já me arrependendo de ter saído de casa. — Se nada aconteceu, por que você está evitando meus olhos? E por que passou a semana inteira parecendo uma sonâmbula em crise existencial? Ela não estava errada. — Foi... intenso — admiti, finalmente. — Intenso como? — Clara deu um pulo na cadeira e quase derrubou o pote de esmaltes da manicure. — Intenso tipo... a energia dele preenche a sala. Ele fala e você esquece o próprio nome. Tipo isso. Clara fez um som que era metade grito, metade risada. — Menina, você tá ferrada. Ele é bonito demais pra esse planeta. — E controlador. E misterioso. E... enfim. Eu não vou alimentar isso. — Alimentar o quê? Uma possível tensão sexual nível filme proibido entre você e o dono da empresa? Eu quis me esconder dentro da bacia de sais. A pedicure da Clara olhou de canto de olho, divertida. — Esse Chefão é o bonitão que passa de vez em quando na TV? Alto, moreno, olhos azuis? — Esse mesmo! — Clara se virou pra ela, animada. — Parece que saiu de uma campanha de perfume caríssimo. Rico, poderoso, com aquela postura de “me obedeça ou me deseje”. E olha, talvez os dois. A outra pedicure, mais velha, largou a lixa e se juntou à conversa. — Ih, conheço o tipo. Bonito demais pra ser confiável. Eles gostam de brincar. — Não duvido! — Clara disse, agora completamente envolvida, gesticulando com os dedos ainda sem esmalte. — Aposto que ele tem uma adega secreta e uma sala com livros antigos e um sofá onde ele seduz funcionárias inocentes com café e promessas vagas. — CLARA! — gritei, agora com metade do salão prestando atenção. Ela me olhou, rindo sem culpa nenhuma. — O quê? Tô só criando o ambiente! — Criando um escândalo, isso sim! Todas as mulheres no salão riam agora. Até a minha pedicure, que até então era uma esfinge de gelo, soltou um risinho contido. — Ó, se tu cair nas garras desse homem, só me conta depois — disse a senhora do caixa, ouvindo tudo. — Mas cuidado. Homens assim... deixam marca. Olhei pra Clara, ainda vermelha de vergonha. Ela me piscou. — Marca boa ou ruim? — sussurrou. — Depende de onde é a marca — respondi, sem pensar. As duas pedicures engasgaram de rir. Clara deu um gritinho. — VOCÊ TÁ PIOR DO QUE EU! E ali, cercada de removedores de cutícula e risadas, percebi que por mais confusa e eletrizante que minha semana tenha sido, eu tinha, pelo menos, um pedaço de normalidade. E uma amiga barulhenta, desbocada... e completamente essencial. Mas mesmo entre risadas e esmaltes, lá no fundo, a imagem dele voltava. O jeito que me olhou. O jeito que não me tocou, e mesmo assim, me deixou em chamas. E me perguntei, pela centésima vez: Até onde eu conseguiria fingir que isso não estava acontecendo?