A cidade de Charleston parecia cinzenta naquela manhã, como se o céu compartilhasse do humor sombrio de Emily Carter. Ela dirigia sem rumo certo, os olhos vermelhos pelo choro, a respiração presa no peito. O rádio do carro tocava uma música melancólica que ela não ouvia de verdade. Tudo era ruído de fundo desde que seus olhos viram o que jamais deveriam ter visto.
Horas antes, tinha ido à casa de Dylan para uma surpresa — uma visita inesperada, como tantas que já fizera. Mas quem foi surpreendida, dessa vez, foi ela. A imagem estava gravada em sua mente como uma tatuagem feita à força: Dylan, seu namorado há três anos, deitado sobre o corpo de sua melhor amiga, Sophie. Os dois entrelaçados, despidos, entregues um ao outro sem culpa aparente. Emily não gritou. Não chorou naquele momento. Apenas olhou. Ficou ali, imóvel, enquanto os dois demoravam a notar sua presença. Quando finalmente o fizeram, Dylan pulou da cama, tentando cobrir-se e balbuciar desculpas que ela não quis ouvir. — Emily, espera... não é o que parece — ele dissera, com a cara mais deslavada do mundo. — Sério? Então o que é? Estavam ensaiando uma cena de filme pornô na minha ausência? A dor veio depois. Quando já estava no carro, acelerando sem saber para onde ir. Cada lágrima parecia cortar sua pele por dentro. Traída pelo homem que amava, ferida pela amiga que jurava lealdade. Era como se o mundo tivesse decidido desabar de uma vez. Após horas dirigindo sem rumo, ela se viu diante de um lugar familiar: a casa de campo da família Wolfe. Uma construção antiga, de dois andares, cercada por árvores altas e envolta em um nevoeiro espesso. O portão de ferro rangeu quando ela o empurrou, como se resistisse à sua presença. Era ali que ela e Dylan haviam passado alguns verões. Lembranças surgiam em flashes — risadas no lago, noites à beira da lareira, promessas sussurradas sob as estrelas. Agora tudo aquilo parecia um conto mal contado, uma mentira confortante que escondia o monstro real. Mas ela precisava de refúgio. Precisava se esconder do mundo e lamber as feridas abertas. Desceu do carro com passos pesados, o vento frio balançando seus cabelos castanhos. A varanda da casa estava coberta por folhas secas, e a porta entreaberta revelava o interior em penumbra. — Olá, tem alguém aí?— ela chamou, com a voz trêmula. Nenhuma resposta, apenas o silêncio. Deu alguns passos hesitantes para dentro com o coração acelerado, O chão de madeira rangeu sob seus pés. O cheiro de madeira úmida e lareira apagada era acolhedor, mas carregava também um peso estranho. Como se alguém — ou algo — a observasse. Emily ignorou o arrepio que subiu por sua nuca. Estava cansada demais para se importar. Mas o que ela não sabia era que seus passos solitários não passavam despercebidos. Havia olhos ali dentro. Um par de olhos sombrios e atentos, que já sabiam quem ela era. E que esperavam, silenciosamente, por sua chegada.O silêncio dentro da casa era quase palpável, interrompido apenas pelo leve tilintar da chuva contra as janelas empoeiradas. Emily caminhava devagar, observando os móveis cobertos por lençóis brancos, as cortinas fechadas e o cheiro carregado de mofo e madeira antiga. A casa parecia adormecida — mas havia algo mais ali, algo que ela não conseguia explicar. Uma presença. Um arrepio percorreu sua espinha, fazendo-a se encolher ligeiramente. — Está perdida? — disse uma voz grave às suas costas, fazendo com que ela se virasse com um salto. Na escada que levava ao segundo andar, meio envolto pelas sombras, estava um homem. Alto, ombros largos, cabelos escuros bagunçados e barba por fazer. Os olhos, no entanto, foram o que mais a marcou — frios e intensos, como gelo prestes a queimar. — Me desculpe… eu não sabia que havia alguém aqui — disse Emily, a voz ainda trêmula. O homem desceu os degraus lentamente, com uma postura quase felina. Seus passos eram firmes, mas silenciosos. Ele usava
Emily acordou assustada. A escuridão do quarto era profunda, cortada apenas por um feixe de luar que escapava pelas frestas da janela. Seu corpo estava suado, o lençol embolado entre as pernas, o coração batendo como se tivesse corrido uma maratona. Sonhara com Alexander. Mas não era um sonho qualquer. Era algo intenso, visceral. Ela sentia até agora o toque das mãos dele em sua pele, o calor da respiração em seu pescoço. Era absurdo. Irracional. Ela mal o conhecia. E, mesmo assim, ele habitava seus pensamentos como uma sombra que se recusa a ir embora. Levantou-se da cama antiga, vestindo apenas uma camiseta larga e meias. A casa estava silenciosa, exceto pelo ranger ocasional das paredes velhas. Desceu as escadas com cautela, atraída pela luz fraca que vinha da sala. Alexander estava ali, sentado em frente à lareira, um copo de uísque na mão. A luz laranja do fogo dançava em seus olhos azuis, e por um instante, ele pareceu quase irreal — uma figura saindo direto de um pesadelo se
Na manhã seguinte, o cheiro de café recém-passado guiou Emily pela casa. A luz do sol filtrava-se pelas janelas, revelando a poeira no ar e o desgaste dos móveis antigos. Apesar da rusticidade do lugar, havia algo aconchegante. Ou talvez fosse apenas a sensação de distância da realidade que ela havia deixado para trás. Alexander estava na cozinha, mexendo uma frigideira com ovos enquanto segurava uma xícara de café preto na outra mão. Usava apenas uma calça de moletom cinza e o cabelo desgrenhado fazia parecer que havia dormido pouco — ou nada. Emily desviou os olhos por um instante, tentando controlar a onda de calor que subia por seu corpo. —Bom dia — disse ela, ainda um pouco tímida. —Bom dia — ele respondeu, sem olhar para ela. —Café? —Por favor. Ele serviu a bebida em uma caneca e a entregou com um olhar que parecia pesar mais do que simples cortesia. Sentaram-se à mesa em silêncio por alguns minutos, ouvindo apenas o som da frigideira e o tique-taque de um relógio antigo pe
A chuva retornou naquela tarde, grossa e pesada como se o céu carregasse a mesma tensão que pairava dentro da casa. Emily passava os dedos distraidamente pelas lombadas dos livros em uma estante da sala de leitura. Desde que Alexander saíra sem dizer para onde ia, a casa parecia ainda mais silenciosa, sufocante. Havia nela uma energia contida, como se cada parede guardasse palavras que ninguém ousava dizer. Ela já estava há dois dias ali, e por mais que a casa fosse grande, havia limites muito claros. O sótão trancado, os corredores do segundo andar que pareciam ecoar passos mesmo quando não havia ninguém, e — o mais tentador de todos — o escritório de Alexander. Ele havia sido claro: "nunca tente descobrir o que faço quando estou trancado lá." Era justamente por isso que a curiosidade queimava mais forte. Emily aproximou-se da porta escura do fim do corredor. Era de madeira maciça, com detalhes talhados à mão. Ela já havia passado por ali algumas vezes, mas nunca tivera coragem de
O céu estava coberto por nuvens pesadas quando Emily atravessou os limites da casa e entrou no bosque. O mapa deixado por Alexander estava dobrado no bolso da jaqueta, com uma marca em vermelho no canto inferior. Um círculo irregular no meio da vegetação, sem nenhuma indicação do que deveria encontrar lá. Os galhos estalavam sob seus pés. O ar estava úmido, carregado de cheiros antigos — terra molhada, folhas apodrecendo, e algo mais... metálico, quase como ferrugem. A floresta parecia respirar em silêncio, viva de um jeito desconfortável. Cada passo mais fundo era também um passo mais longe da lógica. Ela seguiu pelo caminho indicado, ultrapassando arbustos densos até que, enfim, encontrou o que buscava: uma estrutura de pedra, quase totalmente coberta por musgo. À primeira vista, parecia uma ruína, uma simples parede caída. Mas ao se aproximar, percebeu que era uma porta. De ferro. Pesada. Enferrujada. Emily engoliu em seco. Não havia tranca visível. Apenas um puxador com marcas
O caminho de volta pela floresta parecia mais escuro do que quando havia chegado, apesar de o céu ainda manter o mesmo tom cinzento. Emily caminhava ao lado de Alexander em silêncio, as palavras presas em sua garganta, como se tivessem medo de tocar o que acabaram de ver. Ela ainda sentia o toque da mão dele em seu rosto, mas mais do que isso, sentia o que aquilo significava: uma confissão muda. Ele podia fingir controle, podia se esconder atrás da frieza, mas havia algo nele que vacilava perto dela. E isso era mais perigoso do que qualquer segredo. Quando chegaram à varanda da casa, Alexander parou e virou-se para ela. —Você devia fazer as malas e ir embora. Emily ergueu o queixo, a raiva contida explodindo em sua voz. —Por quê? Porque eu descobri o que você não queria que eu visse? Porque agora sei que você é mais quebrado do que tenta parecer? Ele a olhou fundo nos olhos, e pela primeira vez, Emily viu algo como medo neles. —Porque se você ficar, não haverá volta. Não vou ser
A casa parecia diferente naquela manhã. Emily acordou com a sensação de que algo nela havia mudado — algo interno, invisível aos olhos, mas impossível de ignorar. O gosto do beijo ainda pairava em seus lábios, misturado à memória das palavras que trocara com Alexander na noite anterior. Era como se uma linha tivesse sido atravessada… uma que não podia ser desfeita. Ela desceu as escadas com o coração acelerado, sem saber o que esperar. Mas Alexander não estava em lugar algum. A casa parecia vazia. Silenciosa. Só o relógio marcando o tempo, impiedoso, como sempre. Na cozinha, encontrou um bilhete em cima da mesa: “No estúdio. Se quiser saber a verdade, venha.” Não havia assinatura, mas era claro quem havia escrito. Emily seguiu o caminho indicado. Nunca estivera no estúdio, e o cômodo era isolado dos demais, com uma porta pesada e uma fechadura antiga. Quando entrou, encontrou um espaço amplo, com as paredes cobertas por quadros, telas inacabadas e cavaletes. Alexander estava sen
No dia seguinte, a casa estava ainda mais silenciosa do que de costume. Emily acordou sozinha — novamente. O quarto estava frio, e a ausência de Alexander era como um vazio físico. Ela sabia que ele se afastava sempre que se sentia exposto. Era o instinto de alguém que passou a vida se escondendo. Mas ela não recuaria. Vestiu-se rapidamente e desceu até a biblioteca. Algo a inquietava desde a noite anterior. A conversa. As cicatrizes. O beijo. E algo mais… algo que ela viu de relance no estúdio, mas não teve tempo de explorar: um cofre embutido atrás de uma das estantes, parcialmente encoberto por uma pintura inacabada. Seguindo o impulso, voltou ao estúdio. O lugar estava vazio, como esperava. A tela em branco continuava no centro da sala, mas agora havia pinceladas agressivas em vermelho e cinza sobre ela. Como se Alexander tivesse passado a noite tentando expulsar demônios à força de tinta e raiva. Ela foi até a estante ao fundo e afastou a pintura. O cofre estava ali. Antigo,