Juro que eu pretendia avaliar cuidadosamente o gosto, procurar algo estranho ou até tentar ler a expressão do homem enquanto comia, para evitar ser envenenada — mas falhei. Assim que fechei a boca, a comida se derreteu nela. Estava perfeitamente cozida, macia e saciante; eu só queria comer a panela inteira.
Ele deve ter percebido, porque sorriu satisfeito.
— Aqui, eu vou te servir um prato. — Ah, não, senhor. Obrigada, mas não, obrigada. Aqui: sua chave... cartão... coisa — disse, pegando-o dentro da bolsa. — Vou só pegar meu carro e ir embora. — Bem, isso vai ser um problema. — Pegou o cartão com delicadeza. — Seu carro... Bom, não é muito seguro você andar por aí com ele. E acho que você merece um agradecimento decente por hoje. Mas antes, você realmente não quer provar meu brasato al Barolo? É muito bom. Por favor, sente-se!— O que você fez com o meu carro? Já passei por tanta coisa hoje, cobrindo whatever seja que você faz, e eu não quero mais encrenca, senhor... Eduardo ou Jean-Luc ou seja lá qual for seu nome.
A expressão dele caiu de um jeito charmoso, e ele sorriu para si mesmo.
— Esqueci de me apresentar. Sinto muito. Isso foi rude demais. Olá, Carla, eu sou o Daniel.E estendeu a mão.
— Como você sabe meu nome? — Eu... vi no seu carro. Desculpe. Foi meio que uma emergência. E tive que transferir suas coisas do seu carro antigo para o outro. — Carro antigo? Outro? Como assim...? — Venha comigo, por favor.Ele me afastou da cantora italiana e do molho tentador, pelos corredores, até uma garagem com vários modelos de carro.
— Então, onde está? — perguntei. — Aqui. — Ele apontou e balançou um chaveiro diante dos meus olhos. — Esse não é o meu carro! — É agora. Não gosta? Escolha outro. Como eu disse, o que você estava dirigindo não era seguro e hoje levou alguns arranhões e amassados, então talvez seja melhor ficar com um novo. Um que realmente funcione. — O meu carro funcionava! — Não mais, depois de hoje. Aproveite. Então... jantar?— Olha, eu não sei que jogo você tá querendo armar aqui, mas eu não quero participar, certo? Só quero ir pra casa, ficar com meu filho e trabalhar amanhã. Tenho contas pra pagar. Me devolve o carro antigo, no estado que for, e eu vou embora e fingimos que nunca nos vimos.
— Isso não vai acontecer. Na verdade, nada daquilo vai mais acontecer.
— O quê não vai acontecer? Meu carro? — E seu emprego. E suas contas. Veja bem: você me ajudou muito mais do que imagina hoje. Não só me ajudou a evitar uma... digamos... inconveniente entrevista, como também me ajudou a me livrar daquele nojento do Valentine. E do jeito que você o tratou, acusando-o de abuso... Foi genial! Adorei como você o desviou da investigação. E você nem é advogada ainda!— Eu não vou ser advogada. Sou secretária de um advogado.
— Bem, podemos contornar isso, se você quiser. — Contornar...? Como? Espera, nem quero saber. Não me interessa nada ilegal.— E é aí que fica interessante: você obstruiu voluntária e livremente a investigação do Valentine. Você mentiu para ele na cara dura. Com testemunhas. E escondeu que eu tinha uns itens suspeitos no meu carro. Isso não é exatamente comportamento de cidadã exemplar.
— Mas... eu não fiz nada de errado! — murmurei.
— Claro que não. Somos ambos cidadãos exemplares e pagadores de impostos. Pilares da comunidade.— Você pagou imposto dessa casa? E desses carros todos? — perguntei.
— A casa, em si, pertence a uma subsidiária de uma empresa de tecnologia nascida na República Dominicana da qual eu possuo uma pequena participação. — Ah, entendi — respondi, como se tivesse conseguido seguir a lógica. — E esse carro aqui que você está me oferecendo desde que destruiu o meu. Também pertence a uma empresa dominicana? — Hummm... esse... acho que foi leiloado no México depois que a concessionária faliu, após o dono sofrer um acidente feio. Veio como baixa contábil de uma dívida que a concessionária tinha com uma empresa de logística. — E você comprou um carro no México? — Não, comprei a empresa de logística que detinha a dívida e coloquei o carro emplacado aqui. E comprei todos os seus ativos antes de fechar a firma. — Entendi. — Não, eu não tinha entendido. — Tudo perfeitamente legal pela lei na maioria dos países. Ser um empreendedor internacional é meio complicado. Agora, vamos comemorar a aquisição do seu novo carro com um jantar? Meu brasato tá esfriando e o vinho tá ficando raso nas taças. E já te digo: o vinho sozinho valia mais do que o carro que você perdeu.— Eu perdi?
— Sim, que inconveniente terrível, não é? Ter seu carro roubado ali no estacionamento onde você trabalha? — É essa a história que eu devo contar às pessoas? — Recomendo que sim. — Olha, não me sinto confortável com nada disso. Nem com a casa dominicana, nem com a tal empresa de tecnologia e especialmente com o carro mexicano.Daniel sorriu outra vez.
— Veja bem: nada aqui é confortável. Não gosto que você tenha visto meus passaportes e saiba algo sobre mim. Mas também não acho que você gostaria que a polícia recebesse um vídeo seu mentindo para um detetive e protegendo um homem procurado. Isso te coloca como cúmplice. Ainda mais agora, que você entrou na minha casa sozinha e me trouxe o carro procurado.A voz dele ficou fria e pragmática, mesmo com o sorriso. Os olhos azuis não tinham calor nenhum. Parecia uma serpente em volta da presa.
— Então você pode voltar pra casa com esse cheque gordo no bolso e torcer para que nada lhe aconteça nas nossas ruas perigosas — ou aceitar uma justa reparação de um amigo arrependido, jantar bem e dormir na sua cama quente sabendo que o Diogo tem agora um futuro.
— Como você sabe tudo isso? — perguntei, assustada.
Então a expressão dele amoleceu e a voz ganhou um tom alegre.
— Estou com fome e, como disse, o vinho tá pegando pó na cozinha. Siga-me e coma. Saco vazio não fica em pé, minha avó costumava dizer. Um brasato al Barolo com penne alla burrata vai encher esse saco direitinho!E ele virou de volta para o corredor que dava na cozinha.
— Vai me acompanhar? — gritou por cima do ombro. — A escolha é sua!