capítulo 2

Capítulo 2 — Onde eu piso, o chão treme

(Narrado por Muralha)

O morro acorda quando eu respiro.

E quando eu piso… o chão sente.

Já eram quase sete da manhã. O sol começava a se infiltrar por entre os barracos, mas aqui em cima, a luz não manda em porra nenhuma.

Quem manda sou eu.

Desci pro quintal. A vista era absurda.

Dava pra ver a cidade mentindo tranquilidade lá embaixo — carro passando, criança indo pra escola, gente correndo atrás de salário mínimo achando que é livre.

Aqui em cima, a gente sabe o que é liberdade:

mandar, sem ter que explicar.

A moto já me esperava.

Duas rodas com alma de tanque.

Subi nela como quem sobe num trono — armado, pronto, invencível.

— “Vamos?” — perguntou o piloto, o Foguete, um novato que ainda tremia na hora de me olhar no olho.

— “Toca pra base.”

Descemos. Devagar.

Os vielões se abriram como se o morro se curvasse.

A vizinhança fingia normalidade — a mulher estendendo lençol sujo, o menino brincando com pneu, o rádio no pagodinho antigo.

Mas bastava eu passar, que o volume baixava.

O olhar mudava.

O respeito entrava pela garganta seca.

Na boca, o movimento já tava acelerado.

Três aviões no plantão, um vapô na contenção, e o caixa na contagem.

Vi o Diguinho lá, encostado no muro, braço cruzado, atento.

— “Muralha no chão,” — ele anunciou no radinho.

Todo mundo travou por um segundo.

Só pra depois retomar como se nada.

Mas eu vi.

Eles sentem.

Desci da moto. A sola da minha bota batendo firme no concreto.

— “Diguinho.”

— “Chefe.”

— “Atualiza.”

Ele veio no passo certo. Nem rápido demais, nem lento. Já aprendeu.

— “Fluxo constante desde as cinco. Vendemos quatro pinos da carga nova. A quebrada do Sapê tá quieta, mas o Morcego tá rondando, querendo abrir mais um ponto.”

— “Já avisei: o Morcego só voa se eu arrancar as asas.”

— “Entendido, chefe. Quer que a gente derrube?”

— “Ainda não. Deixa cantar mais alto. Quando ele fizer barulho, a gente cala de vez.”

Fui até o caixa.

Vi a contagem: limpa, organizada, como eu gosto.

Rodei o beco. Observei as vielas. Os rostos.

Gente demais olhando de canto.

Gente que deve.

Gente que teme.

Gente que ama e odeia o mesmo nome: Muralha.

Fui até o galpão, onde guardamos as armas.

Entrei.

Armas na prateleira. Munição organizada.

A guerra bem dobrada e pronta pra ser usada.

Peguei uma das AK que recém chegaram. Passei a mão. Fria, limpa, fiel.

— “Se o mundo acabar hoje, essa aqui me leva até o inferno com estilo.”

Diguinho riu, baixinho.

— “Chefe… e o baile da Baixada? Os mano tão pedindo sua presença.”

— “Se eu for, é porque tem recado.

E quem recebe recado meu, não volta inteiro.”

Voltei a andar. Passei pelas casas. Cumprimentei Dona Cida, que me olhou com aquele misto de medo e respeito.

— “Bom dia, Muralha.”

— “Bom é não chover bala hoje, Dona Cida.”

Ela sorriu nervosa.

Mas sabia: se bala viesse, não era pra ela.

Ali ninguém esquece:

Eu sou o muro entre a favela e o caos.

E também sou o caos quando preciso.

O rádio chiou.

— “Base pra Muralha… carro estranho voltou. Vidro fumê, placa fria, dois ocupantes. Tão rodando de novo aqui pela Rua Nove.”

Fiquei em silêncio.

Puxei o cigarro.

Acendi com calma.

— “Qual o modelo?”

— “Corolla preto. Tá devagar. Já passou três vezes.”

— “Segue. Sem abordagem ainda. Quero saber quem eles são antes que eles saibam quem sou eu.”

— “Certo.”

Desliguei o rádio.

Olhei pro céu. Tava limpo.

Mas o ar…

O ar tava carregado.

E eu conheço o cheiro do que tá por vir.

Não era só ronda de curioso.

Não era só milícia querendo intimidar.

Era outra coisa.

Era o tipo de vento que sopra diferente.

Respirei fundo.

— “Diguinho, reforça a contenção da Rua Nove. E diz pro Maicão ficar de olho no alto. Se esse carro parar, quero uma foto do cu do motorista antes dele sair do banco.”

— “Pode deixar, chefe.”

Voltei pro meu ponto.

De onde vejo tudo.

De onde comando tudo.

E ali, parado no alto, com o cigarro queimando na ponta dos dedos e a mão no rádio, eu soube:

Alguma coisa vai acontecer.

E quando acontecer…

o morro não vai dormir no mesmo lugar.

Fiquei ali. Silencioso. Imóvel.

Mas por dentro, minha mente já tava marchando em cima de mapa, tática, suspeita.

Porque quando o mundo tá quieto demais, é porque tem alguém preparando barulho.

Diguinho voltou, limpando o suor da testa com a barra da camisa.

Ele anda como quem já matou. E matou mesmo.

Do meu lado, ele não treme. Não recua.

É o tipo que prefere morrer do que deixar passar.

Parou do meu lado, firme.

— “Base reposicionada. Dois na contenção, dois na sombra. Tão com olho no Corolla.”

Assenti com um movimento de queixo.

Olhei pro relógio. O tempo passava lento demais pro meu gosto.

— “E o piloto?”

— “Luva preta. Mão no volante o tempo todo. Tenso. O do banco de trás não desceu. Tão esperando alguma coisa.”

Ou alguém.

Traguei mais uma vez. Joguei o cigarro no chão e pisei sem pressa.

A fumaça se dissolvendo no vento que soprava do asfalto pro morro.

Ar quente. Ar sujo.

— “Faz o seguinte. Se o carro subir... não avisa. Atende na descida.”

— “De leve ou no seco?”

— “No seco.

Quem não vem com saudade, vem com recado.

E eu tô pronto pros dois.”

Diguinho não respondeu. Só sorriu.

Mas não era sorriso.

Era sede.

Aí ele perguntou.

Baixo. Reto.

Como quem corta carne no silêncio.

— “E a Alana, chefe…

Tem notícia dela?”

Parei.

A palavra soou no ar igual estouro de granada surda.

Tudo em volta continuava — gente rindo lá embaixo, panela batendo, cachorro latindo…

Mas dentro de mim, tudo travou.

Alana.

A filha da favela que jurou que nunca mais voltava.

A mesma que conheceu meu rosto antes de virar máscara.

A única que me viu antes de eu virar lenda.

Respirei fundo.

Engoli a resposta junto com o gosto amargo que veio na garganta.

— “Não.”

Diguinho insistiu.

Não com palavras. Com presença.

Com aquele olhar que dizia: "Se ela voltar... a guerra muda."

— “Mas se ela tiver vindo, chefe…

Tu vai encarar?

Ou vai sentir?”

Virei de lado.

Olhei nos olhos dele.

— “Diguinho...

Eu encaro tudo.

Sinto nada.

Se ela subir com farda, é alvo.

Se subir com saudade, é problema.

E eu resolvo os dois.”

Ele não sorriu. Nem discordou.

Só assentiu, como quem aceita ordem de Deus.

Mas eu sabia.

Diguinho sentia o mesmo que eu.

Ela era cicatriz aberta.

E cicatriz aberta fede quando o tempo vira.

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