Os dias seguintes passaram como quem atravessa um corredor estreito entre dois mundos. De manhã, eu era Marina — secretária eficiente, cuidadora responsável, mulher de rotina exausta e coração cheio de dúvidas. À noite, havia outra coisa em mim. Um calor novo, aceso por mensagens discretas, olhares demorados e palavras não ditas. Lorenzo. Ele não era constante em presença, mas se fazia presente nos silêncios. Um “bom dia” enviado às 7h03. Um “a doceria fica melhor quando você vem” às 17h18. Frases simples, quase inocentes. Mas que me atravessavam como se carregassem muito mais do que diziam. E eu? Eu estava sorrindo mais. Dormindo menos. Pensando demais. Naquela terça, voltei à confeitaria depois do expediente. Yves tinha ido com Vanessa para visitar a avó dela, e eu, em vez de aproveitar o tempo livre para descansar ou lavar roupas, caminhei em direção ao azul suave da fachada como quem busca ar depois de prender a respiração o dia inteiro. Liam me viu chegando e nem precis
Voltei à doceria três dias depois do ateliê. Lorenzo não mandou mensagem depois daquela noite, mas também não precisava. Havia algo mais forte do que palavras circulando entre nós — o tipo de conexão que não se força nem se explica. Yves tinha ficado resfriado, o que significou noites picadas, lençóis trocados e meu corpo operando no limite da resistência. Ainda assim, depois de deixá-lo com Vanessa e me arrastar pelo expediente, fui para a confeitaria como quem volta ao único lugar onde ainda se sente inteira. Lorenzo estava lá. Sentado na mesa do canto, onde normalmente eu me sentava. Uma xícara de chá escuro diante dele, os dedos longos desenhando círculos invisíveis sobre o tampo de madeira. Quando me viu, fez um gesto discreto com a cabeça, convidando sem invadir. — Achei que você ia sumir — disse, assim que me aproximei. — Achei a mesma coisa de você. Ele sorriu. Menos do que um sorriso. Mais como um reconhecimento. — Quer sentar? Sentei. Liam nos observava de lo
Yves ainda dormia com o nariz entupido, o corpinho encolhido sob a coberta de bichinhos. Vanessa chegou mais cedo do que o habitual e, quando me viu sair do quarto vestida e com os olhos marcados por uma noite inquieta, só assentiu com um sorriso gentil. — Vai. Eu fico com ele até você voltar. Mas compra um antialérgico na volta. — Obrigada… — murmurei, pegando a bolsa. Vesti uma blusa preta de tecido leve, calça jeans escura, e prendi o cabelo como de costume. Por fora, era a Marina de sempre. Por dentro, não. O nervosismo vinha do estômago. Não do coração. Era diferente de antes. Não era a ansiedade de encontros esperados ou de exposições improvisadas. Era algo mais denso. Mais antigo. Como se eu estivesse prestes a entrar em uma parte da minha história que sempre existiu, mas que só agora se revelava. Aaron me esperava do lado de fora da Galeria Armand. Estava encostado no batente da porta como se fizesse parte da fachada — preto dos pés à cabeça, os cabelos arrumados com
O som do lápis contra o papel era suave, quase terapêutico. Eu estava sentada no sofá com Yves adormecido ao meu lado, o paninho azul embolado perto da mãozinha gorda. Ele respirava pesado — o tipo de sono profundo que só vem depois de muito brincar e mamar. Eu havia prometido que ia dormir cedo também, mas o caderno no colo insistia em me manter acordada. Sem pensar muito, comecei a desenhar de novo. Traços leves. Uma curva aqui, uma linha ali. Quando percebi, já estava na terceira página, tentando capturar o jeito como Lorenzo segurava a xícara de café. O jeito como seu cabelo caía em mechas sobre a testa. A concentração no olhar. As mãos. Sempre as mãos. Suspirei. Era como se ele morasse nas entrelinhas dos meus pensamentos agora.Desviei o olhar do desenho, culpada e divertida ao mesmo tempo. A verdade é que ele não havia feito nada além de ser gentil, presente e silenciosamente constante. Mas havia algo nele que me atravessava. Como se sua presença tocasse algo que eu nem sabi
~ Entre cafés, silêncios e algo que começa a florescer devagar demais para ser ignorado ~Era final de tarde quando saí com Yves enrolado no sling azul que Vanessa me ajudou a ajustar. A cidade estava fresca, com aquele ar de chuva que não veio, e o céu parecia um borrão pastel entre o cinza e o pêssego. Tinha colocado um casaco por cima da blusa leve e caminhava com passos calmos — mais para espairecer do que com algum destino definido.Mas, como sempre, acabei na confeitaria.Já não era mais apenas o cheiro do café ou a textura do pudim. Era o som da porta se abrindo. Era a cortina branca balançando discretamente. Era aquele espaço pequeno e seguro onde eu me reconhecia sem esforço.Yves dormia tranquilo, o rostinho encostado no meu peito, a respiração curtinha e quente. Liam sorriu quando me viu entrar.— Mesa de sempre?Assenti com um aceno pequeno e fui até o canto. O lugar parecia mais vazio que o habitual — ou talvez fosse só o mundo dentro de mim que estivesse espaçoso demais
Alec.Bonito demais para passar despercebido. Mas não era só isso. Ele tinha aquele tipo de beleza que incomoda — não pela arrogância, mas pela presença. O olhar profundo demais. O andar silencioso. A forma como parecia carregar um universo inteiro em silêncio, sem precisar justificar sua existência.Desde a primeira vez que o viu no estúdio, Marina sentiu que algo nela reagia de um jeito que não sabia nomear. Não era apenas desejo — embora fosse impossível negar a atração física. Era um incômodo mais sutil. Como se sua simples presença desarmasse suas defesas e a obrigasse a encarar tudo o que tentava esconder. Principalmente de si mesma.Havia algo no jeito como ele a observava... como se soubesse.Como se enxergasse não apenas Marina, mas Sara também.E por isso, naquela sexta-feira nublada, quando Leonardo lhe mandou uma mensagem casual — “Passa aqui mais tarde. Tem algo novo que quero te mostrar” —, Marina hesitou. Por segundos longos demais. Pensou em não ir. Em inventar uma des
A rua estava úmida pela garoa que insistia em cair desde o amanhecer. Eu quase não saí de casa. Quase. Yves teve uma crise de birra por não achar um dos desenhos preferidos dele e eu já estava com dor de cabeça antes das nove da manhã. Mas mesmo assim, mesmo com tudo me dizendo para ficar, vesti minha jaqueta jeans, amarrei o cabelo no alto da cabeça e saí. Sem maquiagem. Sem rumo definido. Só com vontade de silêncio — ou de qualquer coisa que se parecesse com isso.Meus pés seguiram sozinhos, como já faziam há semanas. Quando percebi, estava empurrando a porta da doceria.O som familiar do sino me trouxe uma sensação estranha de déjà-vu. Como se cada visita fosse uma repetição de outra versão de mim. A mesma mesa, perto da janela. O mesmo cheiro de café fresco misturado com baunilha e açúcar queimado. E claro, Liam, sempre atrás do balcão, com aquele sorriso de quem sabe de tudo e escolhe não dizer nada.— O de sempre? — ele perguntou, antes que eu dissesse qualquer coisa.— Sempre.
A primeira coisa que percebo é o cheiro. Um perfume forte, adocicado demais. Não é meu.Meus olhos se abrem devagar. A luz é baixa. Os lençóis, desconhecidos. E o teto... definitivamente não é o da minha casa.Meu corpo está dolorido, como se eu tivesse dançado a noite inteira ou brigado com o mundo. Talvez as duas coisas. Minhas pernas doem. Meus lábios ardem. Há uma nota de cinquenta dobrada no bolso da minha jaqueta. Não lembro de tê-la colocado ali.A sensação de vazio no peito é mais familiar do que eu gostaria de admitir.— Que dia é hoje? — murmuro, tentando encontrar respostas que nunca vêm.Levanto cambaleando, tentando montar o quebra-cabeça da noite anterior. Mas tudo que encontro são peças que não se encaixam: um salto quebrado no chão, um copo de uísque pela metade, uma gargalhada que ainda ecoa na minha cabeça, mas que não é minha.Foi ela de novo.A mulher que vive dentro de mim.A que desperta quando eu apago.Não sei o nome dela. Só sei que, quando ela assume, eu desa