Capítulo 7

Um Soldado Perdido no Jardim

RAFAEL

— Pai, acho que não é assim...

A voz doce da minha filha de oito anos me fez parar no meio da trança. Emma se olhou no espelho com uma expressão incerta, uma mistura de paciência e resignação. Acontece que eu não fazia ideia do que estava fazendo. Nenhuma mesmo.

Fui treinado para operar armas, seguir códigos, comandar equipes em situações extremas. Passei anos me acostumando a dormir com um olho aberto. Mas agora, diante de uma escova de cabelo e elásticos coloridos, eu era só um homem perdido.

Jeniffer dominava esse território. Era ela quem fazia as tranças. Quem colocava bilhetes engraçados nos lanches e inventava vozes para as bonecas antes de dormir. Eu era o soldado. Ela, o coração da tropa.

Mas tudo mudou naquela manhã. Aquela maldita curva. A pista molhada. O telefone tocando em hora errada.

Larguei tudo. A farda, os gritos, o barulho do mundo. Pedi baixa, vendi o que precisei e voltei a uma profissão que, sinceramente, nunca pensei que atuaria. Contabilidade. Trabalho em casa. Tentei encontrar ali algum equilíbrio, alguma maneira de ser o que minha filha precisava.

— Me perdoa, querida… Vai ter que ficar assim mesmo. Prometo que vou treinar mais. Um dia, eu acerto.

Emma suspirou. Aquele tipo de suspiro que uma criança não deveria saber dar.

Ela calçou os sapatinhos com calma, prendeu a mochila rosa no ombro e, antes de sairmos, olhou uma última vez para o espelho. Não disse nada. Nem precisava.

A professora pediu uma planta para uma atividade na escola. Se fosse com a Jeniffer, a gente levaria uma flor com nome poético e folhas que dançassem com o vento. Mas agora sou eu. Com as mãos desajeitadas. Tentando acertar as tranças... e a vida.


Estacionei o carro em frente à floricultura. A fachada era bonita, com flores pendendo das janelas como se quisessem fugir para a rua. O sol atravessava os galhos das árvores e pintava o chão com luz e sombra.

Emma soltou o cinto antes mesmo de eu desligar o carro. Abriu a porta, pulou para o chão e correu na frente.

— Emma, espera! — gritei, mas ela nem olhou para trás.

Suspirei e fui atrás, sentindo o mesmo peso no peito de todos os dias. O medo de errar. O medo de não ser suficiente.

O sininho da porta tocou quando entramos.

Foi aí que eu a vi.

Ela estava de costas, com um regador na mão, cuidando de uma planta como se fosse um tesouro. O movimento calmo, quase íntimo. O tipo de presença que preenche um espaço mesmo sem falar uma palavra. Os cabelos castanhos caíam em ondas leves pelas costas. Mas quando ela virou...

Foi como um soco calmo no estômago.

Olhos escuros, intensos, como se carregassem histórias demais para um rosto tão jovem. Um sorriso que ainda não era um sorriso, mas ameaçava acontecer a qualquer momento. E, por um segundo, o mundo ficou em silêncio.

Emma se escondeu atrás das minhas pernas e agarrou minha calça com força. Senti seus dedinhos apertando o tecido e lembrei dos relatórios da escola. "Introvertida, retraída, dificuldade em interagir". Parte do luto, disseram. Mas ver a minha filha se esconder daquele jeito ainda me rasgava por dentro.

A mulher se aproximou com passos lentos, olhos suaves, sem pressa de falar. Parecia que sentia o peso no ar. Olhou para mim, depois para Emma, e então, com uma gentileza que não se vê mais por aí, disse:

— Oi... Posso ajudar?

Demorei um segundo para responder. Minha garganta secou. Quando a voz saiu, foi mais áspera do que eu queria.

— Estamos procurando uma planta... para minha filha levar na escola.

Ela não se incomodou com meu tom. Só se agachou, nivelando-se à altura de Emma, como quem sabe exatamente o que dizer — ou como dizer sem assustar.

— Acho que tenho uma perfeita para você, querida. Que tal uma suculenta? Elas são fortes, resistentes. E ainda assim, lindas.

Emma espiou atrás da minha perna, curiosa.

— Meu nome é Emma... — murmurou. — E esse é meu pai. Rafael.

Foi a primeira vez em semanas que ouvi aquele tom doce na voz da minha filha. E, naquele instante, algo dentro de mim cedeu. Uma parede, talvez. Um bloqueio que o luto construiu sem pedir permissão.

— Eu sou Isabela — ela respondeu, com um sorriso gentil, mas que parecia guardar algo mais profundo.

E, por algum motivo que não consegui entender na hora, aquele momento ficou marcado. Como se fosse o início de alguma coisa. Um ponto de partida silencioso. O tipo de encontro que parece pequeno, mas muda tudo por dentro.

Talvez fosse o modo como ela olhou para Emma. Ou o jeito que me encarou sem desviar. Como se enxergasse... além.

Tudo que sei é que, quando saímos de lá com a suculenta escolhida e Emma apertando meu dedo com sua mãozinha pequena, eu ainda sentia o calor do toque de Isabela no meu.

ISABELA

O sino da porta ainda balançava quando ele e a menina saíram.

Fiquei parada por alguns segundos, segurando o vasinho pequeno com mudas de rosas que a menina tinha gostado tanto. Cuidou dele com tanto carinho, como se fosse a coisa mais importante do mundo. E talvez fosse mesmo. Mas ela havia levado, no fim, a suculenta.

Levei a planta até o balcão e me encostei, respirando fundo. Meus dedos ainda lembravam o calor da mão do Rafael. Rafael… o nome que ele disse quando me cumprimentou. Ficou martelando na minha cabeça, junto com a imagem dele.

Era impossível não notar.

Ele tinha aquele porte que a gente vê em filme, mas quase nunca encontra na vida real. Ombros largos, postura reta, como se estivesse sempre pronto para uma briga invisível. A camisa branca com as mangas dobradas mostrava os antebraços fortes, a pele marcada por algumas cicatrizes discretas. Músculos sob controle.

O cabelo escuro, cortado no estilo militar, impecável. Como tudo nele.

E a barba por fazer dava um toque de descuido calculado, como se fosse de propósito.

Mas foram os olhos…

Castanhos, profundos, com uma sombra de dor tão familiar que, por um instante, eu quis perguntar se ele também tinha sido traído. Ou perdido alguém. Ou os dois.

Tinha algo nele que me deixava desconfortável. Não de um jeito ruim. Mas daquele tipo de desconforto que só aparece quando você reconhece um sentimento antigo dentro de alguém que acabou de conhecer.

E a menina… Emma.

Tão quietinha, tão na dela, mas com um olhar que pedia um abraço.

Quando me lembrei do sorriso dela — pequeno, tímido — algo dentro de mim se acendeu. Um tipo de carinho que eu achava que tinha morrido junto com o fim do meu noivado. E olha que eu e Carlos nunca falamos sobre ter filhos.

Peguei o pano e comecei a limpar o balcão sem olhar direito. Era só uma desculpa para acalmar o coração.

Eu não estava pronta para me sentir assim. Para me deixar tocar — nem que fosse por um olhar, um aperto de mão ou um sorriso contido de uma criança.

Mas alguma coisa naquela visita mexeu comigo.

A figura de um homem forte, com a cara fechada, trazendo pela mão uma filha tão frágil.

Ou talvez fosse o fato de que, pela primeira vez depois do término, eu percebi que ainda conseguia notar um homem. E não qualquer homem.

Aquele homem.

Balancei a cabeça, tentando afastar esses pensamentos. Eu não vim para essa cidade atrás de distração. Vim para me reconstruir. Para juntar o que sobrou de mim com paciência. Sem pressa. Sem criar ilusões.

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