PONTO DE VISTA DE ISABELAA manhã de sábado se arrastava preguiçosa, daquele jeito gostoso de dia de folga. Acordei sem pressa, preparei meu café com calma e me sentei no sofá, ligando a televisão mais por costume do que por real interesse na programação. Me peguei pensando em como a vida tinha dado uma reviravolta desde que cheguei a esta cidade. Ainda não tinha construído aquela rede de amigos que eu tanto desejava, mas as duas pessoas que tinham entrado na minha vida de forma mais significativa eram, sem dúvida, Emma e Rafael. E, para minha paz de espírito, Carlos, o fantasma do meu passado, parecia ter finalmente se silenciado. Isso era o que eu esperava.Enquanto estava ali, meio perdida nos meus pensamentos, o som de batidas na porta me sobressaltou. Abri e me deparei com a dupla dinâmica: Emma, radiante como sempre, e Rafael, com uma expressão um pouco diferente do habitual. Seus olhos encontraram os meus e percebi um tom mais intenso, um escurecimento sutil que me causou um ar
Quando a carne ficou no ponto, com aquele cheiro delicioso invadindo o jardim, tomei a liberdade de preparar um prato para Emma, cortando a carne em pedacinhos e colocando um pouco de arroz e salada ao lado. Sem perceber, minha mão já estava montando outro prato, com uma porção generosa para Rafael. Ao entregá-lo, nossos dedos se roçaram de leve, e naquele breve instante, parecia que o mundo ao redor tinha desaparecido. Lógico que já havíamos nos tocado antes, um esbarrão na floricultura, um toque de mãos ao cuidar da suculenta, mas com Rafael tudo era diferente de quando eu estava com Carlos. Não havia aquela frieza, aquela indiferença. Com Rafael, cada olhar, cada roçar de pele, me causava arrepios que eu nunca senti antes.Olhei fixamente para ele, e percebi um leve rubor subir pelas suas bochechas sob o meu olhar. Foi então que a ficha caiu. Eu tinha preparado a comida para ambos, como se fosse a esposa em um almoço de domingo com o marido e a filha. Como tudo tinha se tornado tão
Na segunda-feira, o cheiro das margaridas frescas foi a primeira coisa que me puxou de volta à realidade. A floricultura parecia mais viva do que o normal, as cores mais vibrantes, os aromas mais intensos. Era como se cada pétala, cada folha, percebesse a quietude nova que eu carregava no peito. Talvez fosse o toque breve, mas carregado, da mão dele no sábado.Ou o silêncio denso, cheio de significados trocados depois que Rita se afastou, deixando um rastro de estranheza no ar.Talvez fosse só eu, finalmente começando a me sentir… inteira novamente, depois de tanto tempo. Ajeitei os buquês na vitrine com um cuidado quase obsessivo, alisando pétalas imaginárias, como se a perfeição das flores pudesse refletir a quietude nova que florescia em mim. Dona Lurdes ainda não tinha chegado, então aproveitei o silêncio e a calma da manhã para reorganizar as gérberas em um arco-íris de cores, alinhar as orquídeas brancas como neve e tentar espantar os pensamentos que insistiam em rondar minha me
PONTO DE VISTA DA ISABELA Eu trabalhava como recepcionista num hotel fazia uns cinco anos e, na real, eu amava o que fazia. O ambiente era super acolhedor, os hóspedes sempre me contavam cada história maneira, e a rotina, por mais corrida que fosse, nunca me cansava. Sentia que aquele lugar era quase minha casa. Assim que meu turno acabou, fui pro banheiro tranquila, carregando minha bolsa. Em frente ao espelho, dei um retoque na maquiagem com cuidado. Meu cabelão castanho, que descia em ondas até a altura dos cotovelos, tava solto, brilhando na luz amarela do lugar. Meus olhos castanhos, que sempre foram tão comuns, pareciam brilhar mais forte hoje. E não era à toa, né? Eu tava quase saindo dali direto pro apartamento do meu noivo. No fundo da bolsa, bem protegida, eu levava uma garrafa do melhor vinho do hotel, um dos preferidos do Carlos. Além disso, tinha separado uma revista com ideias de festas, toda marcada com post-its nas páginas que tinham detalhes a ver com a gente. Cent
Dirigi meio no automático, sabe? Só com as mãos firmes no volante e os olhos grudados na estrada. A cidade parecia mais fria, mais cinza, e o caminho até meu apartamento, que ficava longe dali, nunca pareceu tão demorado. Cada quilômetro parecia carregar o peso do que eu tinha acabado de ver, como se eu ainda pudesse ouvir as palavras deles ecoando na minha cabeça. "Foi um momento de fraqueza." "Aconteceu só uma vez." "Eu te amo."Mentira pura.O silêncio dentro do carro era quase insuportável, mas ainda era melhor que qualquer som. Melhor que a voz da minha melhor amiga pedindo desculpa. Melhor que a imagem dele... sem camisa, com ela. Meu estômago revirava só de lembrar.Quando finalmente estacionei na frente do prédio, respirei fundo. Subi as escadas devagar, sentindo o corpo moído, como se tivesse envelhecido uns dez anos numa noite só. Abri a porta do apartamento com a mão tremendo e fechei com força. Ali era minha casa. Meu refúgio. E agora, meu lugar pra desabar.Joguei a bolsa
Na manhã seguinte, acordei com a cabeça pesada e os olhos meio sensíveis. Parecia que a tristeza da noite anterior tinha deixado marca física mesmo. Tomei um banho rápido, só pra dar um up no astral, e vesti uma calça jeans confortável e um moletom. O celular tava desligado desde ontem, do jeito que eu queria, mas agora eu precisava fazer uma ligação. Uma voz só, que ainda me passava segurança no mundo. Liguei pra minha tia Benedita. Ela atendeu de primeira, com aquela voz suave que sempre soava como casa. "Tudo bem, filha?" perguntou, com um carinho de verdade. Ela sempre me chamava assim, filha, mesmo sendo minha tia. E no fundo, sempre foi mais mãe do que qualquer outra pessoa na minha vida. Respirei fundo antes de responder. "O casamento foi cancelado." minha voz saiu seca, direta. "Mas... não quero falar disso agora, tia. Só preciso saber se tem um quarto sobrando aí pra mim." Teve um silêncio breve do outro lado da linha. Mas não aquele silêncio estranho. Foi um silêncio ac
Umas seis horas depois, o ônibus finalmente parou na frente da pousada da titia Benedita. O céu ainda tava escuro, um azulzão profundo cheio de estrelas, mas as luzes da fachada antiga da pousada iluminavam de leve o chão de pedras. A construção era simples, charmosa e carregada de lembranças boas. As ruas da cidade tinham aquele toque rústico e nostálgico, sabe? O chão de pedrinhas encaixadas parecia contar histórias só de olhar.Desci do ônibus meio cansada, mas sentindo o ar fresco do interior me dando um abraço. Um casal simpático, que tinha sentado umas duas fileiras atrás de mim, me ajudou a pegar minhas malas do bagageiro."Muito obrigada, viu?" agradeci com um sorriso sincero, ajeitando a alça da mochila no ombro.Foi aí que eu vi ela. Vindo com passos firmes, uma senhora com o cabelo pintado de loiro escuro que agora eu via que era branco na raiz, usando óculos grandes e roupas largas e confortáveis, vinha na minha direção de braços abertos."Minha menina!" ela disse com a vo
Terminei meu chá, sentindo o calor gostoso ainda nas minhas mãos."Quer conhecer seu quarto?" a titia Benedita perguntou com um sorriso carinhoso.Assenti com um sorriso também e deixei a xícara na mesinha. Levantei e fui seguindo ela pela pousada, vendo como tudo parecia tão aconchegante. Subimos uma escadona de madeira, que dava uns rangidinhos a cada passo, e chegamos num segundo andar com um corredor grandão cheio de portas brancas.De repente, me liguei."Minhas malas, tia… acabei deixando lá na sala."Ela deu um tapinha de leve no meu ombro e falou com aquele jeitinho firme e de mãe dela."Não se preocupa com isso, filha. Tenho um rapaz que ajuda com as malas dos hóspedes. Ele já já sobe tudo pra você.""Tia… obrigada por tudo, viu? Por me receber assim. Nem sei como te agradecer.""Você é da família. E família não agradece, retribui com amor." disse ela com um brilho nos olhos antes de abrir uma das portas do corredor.O quarto era um encanto. As paredes num tom de roxo escuro