Ecos do passado

Narrado por Maitê

Ao caminhar pela casa em direção à laje, cruzo o olhar com Larissa e Talita, que estão ali, conversando baixinho. Fico surpresa com a única preocupação delas: chamar a atenção do líder do comando. Fico atônita, observando como duas pessoas podem se rebaixar a esse nível.

Como alguém tem coragem de se envolver com o mesmo homem que a própria irmã, chegando ao ponto de quase se matarem por ele? Claro, ele pode ser conhecido pelo famoso “pau de ouro”, mas mesmo assim, não me permito descer a esse nível. Minha dignidade é maior do que qualquer atração passageira ou desejo insano.

Chego à laje e me permito chorar. O ar está me sufocando. As lembranças do passado, contra as quais lutei tanto para que me deixassem, ainda gritam em cada parte do meu ser. O reencontro com meu pai e minha madrasta é um conjunto de horrores que me assombra. Sinto o vento suave acariciando minha pele enquanto contemplo o horizonte do morro.

O vento cortante parece ecoar a frieza que tento manter em meu interior. Eu gostaria de poder esquecer tudo, como todos ao meu redor aparentemente conseguiram fazer. Mas, se eu me permitisse expressar tudo o que realmente penso, sei que não seria apenas eu que sairia machucada.

Por enquanto, guardo tudo dentro de mim, sabendo que o dia do acerto de contas eventualmente chegará. E espero que eles estejam prontos para enfrentar o momento.

Sinto minha barriga roncar, e, com isso, decido descer para preparar algo para comer. Desço as escadas, torcendo para não encontrar ninguém no caminho. Chegando à cozinha, tento ser rápida e discreta, evitando olhares e interações desnecessárias.

A geladeira revela algumas opções limitadas, mas suficientes para satisfazer minha fome momentânea. Enquanto preparo algo para comer, ouço os murmúrios distantes da festa ainda em andamento.

Entendo que, para eles, devo parecer uma chata amargurada, mas ninguém sabe o que eu passei durante esses quatro anos. Enquanto frequentava uma universidade em outro país, na casa da irmã mais nova do meu padrinho, ela tentava fazer de tudo para me agradar, mas o vazio em meu peito não me permitia me abrir.

A insônia tornou-se frequente, e conseguir duas horas de sono era considerado um grande feito, isso quando as crises de ansiedade ou pânico não me atingiam antes.

Não é que eu não quisesse viver uma vida tranquila ou me divertir como as meninas da minha idade, mas ninguém tem ideia do efeito devastador que a bebida tem sobre mim. Lembro-me de um dia, já irritada com a vida que levava, ter decidido ir a uma festa.

Bebi e até conversei com algumas pessoas, mas, a cada olhar, eu via as cenas que assombravam meus pesadelos. O sangue em minhas mãos, os olhos assustados à minha frente. Nada fazia sentido, e o buraco em meu peito parecia gritar ainda mais.

Foi quando eu decidi acabar com aquela dor que me consumia por dentro. Cheguei à casa de Sandra com Fumaça em minha cola, mas não disse nada. Subi para o meu quarto, trancando a porta atrás de mim.

No banheiro, liguei o chuveiro para não ouvir os barulhos ao redor. Sentada no chão gelado, chorei desesperadamente, batendo a cabeça contra a parede. Estava em uma briga interna comigo mesma, um conflito entre viver e morrer. Decidi, então, entrar na banheira.

Com uma lâmina, cortei meus pulsos, um de cada vez. A dor física era intensa, mas nada comparada à dor na alma que eu estava sentindo. Cada gota de sangue que caía na água parecia um alívio momentâneo. A água já estava ficando vermelha, e minha consciência se dissipava, até que, finalmente, me deixei ser levada pela última luz que pairava sobre mim.

Acordei no dia seguinte em um hospital. Toda a dor, o esforço, tudo havia sido em vão. Vi Fumaça ao meu lado, com a expressão fechada, e Sandra, com os olhos marejados.

— Oi. — Quebro o silêncio.

— Graças a Deus, minha menina, você acordou. Me diga o porquê que você fez isso. — Ela perguntou, preocupada.

— Eu não aguento mais. A dor transborda em mim. Eu… eu nem sei quem sou mais. — Respondi, as lágrimas inundando meus olhos.

— Xiiii, vai ficar tudo bem, menina. Se acalme. — Disse ela, em uma tentativa constante de acalmar meu espírito em pedaços.

Aquela noite sombria permanece como uma cicatriz em minha memória, marcando o momento em que a dor parecia ser insuportável. Depois disso, Sandra e Fumaça impuseram restrições e cuidados redobrados, uma tentativa desesperada de me manter segura, mas também uma tentativa de controlar o que não podiam.

Cada gota de álcool, cada tentativa de me libertar dos fantasmas do passado, tornava-se um lembrete vivo de quão profundo o abismo era. O banho, que um dia foi um refúgio, transformou-se em um ritual rápido e controlado. As proibições impostas por Sandra e Fumaça eram uma tentativa desesperada de manter meu frágil equilíbrio.

Agora, de volta ao morro, me vejo novamente confrontada com o peso das feridas emocionais. Elas podem ser tão difíceis de curar quanto as físicas. O ambiente familiar, com todas as suas lembranças conflitantes, reacende o desafio constante de encontrar paz dentro de mim mesma.

Enquanto pondero sobre tudo isso, alguém se aproxima. Mesmo de costas, posso perceber a presença familiar.

— Você não para com esse showzinho nunca? — Vanessa, a esposa do meu pai, diz com sarcasmo.

Perco a fala. Tenho tantas coisas para dizer, mas sei que, se abrir a boca, nada de bom sairá. Fico em silêncio, esperando que ela se vá, mas antes que possa falar mais alguma coisa, vejo o líder do comando entrar na cozinha.

— Deixa a menina em paz, Vanessa. — Ele diz, com a voz firme.

— Hmm, já não basta comer minhas duas filhas, ainda está querendo essa daí? Deus é mais… — Ela fala, com um tom de desdém.

— Lave a sua boca ao falar de mim. Eu jamais me rebaixaria a esse nível. Não me compare a você ou suas filhas, porque eu nunca serei como vocês. — Respondo, com a mesma frieza que tenta tomar conta de mim.

— Olha, olha. — Ela diz, batendo palmas, zombando da situação. — Isso mesmo, mostre a todos quem você realmente é.

Antes que eu possa dizer mais alguma coisa, o líder do comando a segura pelo pescoço, sem se importar com quem ela é casada.

— Abaixa o seu tom de voz ao falar comigo, eu não sou suas amiguinhas não. — Ele diz, a ameaça clara em sua voz.

Vanessa sai apressada, deixando-me sozinha na cozinha com ele. Olho bem para o seu rosto, e, apesar do receio, decido falar.

— Não precisa me defender. Eu sei muito bem a cobra que Vanessa pode ser. Você interferindo só piora uma situação que já é ruim.

— Deixa de ser mal-agradecida, estava tentando te ajudar. — Ele diz, irritado.

— E quem pediu a sua ajuda? Só não tente mais. Quando ninguém te chamar, não se intrometa. — Respondo, tentando manter a raiva sob controle.

Pego meu lanche e subo para o meu quarto, sem dar a chance dele falar mais nada.

Enquanto subo as escadas, sinto um misto de alívio e frustração. A presença dele, tentando me proteger de uma situação desconfortável, mexe com sentimentos que eu preferiria evitar. No meu quarto, fecho a porta e encaro as paredes, deixando o peso do passado se instalar novamente.

Eu sei que ele só queria me ajudar, e que provavelmente eu tenha sido mais rude do que o necessário, mas prefiro cortar o mal pela raiz desde o início, principalmente porque minhas irmãs quase se mataram por ele. Não quero ser mais uma e jamais me permitiria passar por uma situação dessas.

Não que eu deseje encontrar o amor da minha vida, mas também não quero ser mais uma peça de troca nas mãos de um traficante que não sabe nem o que quer da própria vida.

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