Narrado por Lorde
Vejo Maitê saindo, e a vontade que eu tenho é de puxá-la pelo cabelo e forçá-la a me encarar. Quem ela pensa que é para falar assim comigo? Mesmo que eu tenha tentado apenas ajudá-la, a porra da situação não é simples. Sei que ela está sofrendo por ter voltado hoje, e sua mente provavelmente está um turbilhão de lembranças que a destroem por dentro. Caralho, só porque ela está mal não significa que tem o direito de sair por aí descontando sua frustração nas pessoas. — Penso comigo mesmo, a raiva subindo pelo meu peito, enquanto olho para a porta pela qual ela acabou de sair. Quando tento dar um passo para ir embora, uma voz rouca interrompe meu fluxo de pensamentos. — Foi mal aí, parceiro. Eu sei que, mesmo que eu me desculpe por ela, não vai ser o suficiente. Mas só peço que tenha paciência. Os últimos meses foram mais complicados do que todos os outros. Houve uma época em que ela até estava tentando sobreviver, dia após dia. Mas hoje… hoje ela desistiu de tudo, parceiro. Até mesmo quando está trabalhando como médica, que sempre foi o seu sonho, ela não tem mais aquele brilho no olhar. É difícil ver como ela está perdida dentro de si mesma. Por isso, achamos que seria melhor trazê-la de volta para o Brasil. No entanto, ao observar como ela tem agido desde que pisou no morro, já nem sei se essa foi a melhor escolha. Fumaça fala, sua voz cheia de um tom de impotência. Seu olhar, também de preocupação, reflete um cansaço que se estende muito além de sua postura de malandro. Eu ainda não sei o que pensar sobre tudo aquilo. A verdade é que, apesar de toda a revolta, uma parte de mim sente uma preocupação que nem eu consigo entender direito. Mas, o que me tira do sério é o comportamento dela. Como ela pode ser tão indiferente? Como pode olhar para todos com aquela expressão de desprezo, sem se importar com as consequências? — Mesmo que ela esteja sofrendo, não pode sair por aí descontando suas frustrações nas pessoas. — Eu respondo, tentando fazer com que Fumaça entenda. Saí de lá, já puto da vida, e fui direto para o meu morro. Pelo menos lá, o barulho das ruas e a rotina implacável me ajudavam a esquecer tudo que me irritava. Quando estou prestes a entrar no meu carro, vejo a mesma morena que sentou no meu colo mais cedo se aproximando de mim. Ela passa as mãos pelo meu corpo, e seu sorriso, que mistura malícia e confiança, é inconfundível. — E aí, gatinho, me deixa tirar o teu estresse? — Ela diz com um olhar provocante. Antes mesmo de eu conseguir pensar em alguma coisa, ela beija minha boca. O gosto de Halls misturado com cerveja me faz lembrar de uma noite qualquer, uma dessas noites sem sentido que a gente tenta esquecer. Ela começa a me beijar, e seus dedos deslizam por meu corpo com uma confiança que só as mulheres acostumadas a conseguir o que querem possuem. Em seguida, ela baixa a mão, e seu toque me faz ficar alerta. Eu, no entanto, estou mais atento ao que se passa ao redor. Tento me concentrar em algo além de sua provocação, até que algo me chama a atenção. Ergo a cabeça rapidamente, e lá está ela. Maitê. Ela me observa da janela, e o olhar dela… aquele olhar de nojo. Eu consigo ver a repulsa estampada em seus olhos. Não sei o que exatamente aconteceu, mas aquele olhar mexeu comigo. Foi como um soco no estômago. Eu, no impulso, afasto a morena que está comigo e saio, cantando pneu. O som do motor do carro ecoa, mas é a imagem de Maitê, com o olhar de julgamento, que continua me assombrando. A música ainda toca na rádio do carro, mas as palavras de Fumaça reverberam na minha mente. Ele disse que ela estava mal, que ela estava perdida. Será que aquilo tudo tem alguma relação com o que eu vi? O que está acontecendo com ela? — Que porra tá acontecendo comigo? — Falo, batendo no volante com raiva. Chego ao meu morro, e a sensação de alívio é momentânea. Eu estaciono o carro e, ao sair, respiro fundo, tentando esquecer aquele olhar de desaprovação de Maitê. — Mas que merda, por que estou me importando com o que aquela diaba acha ou não? — Penso comigo mesmo, tentando racionalizar e me afastar daquela sensação de incômodo. Entro em casa e encontro minha irmã no sofá, com os olhos vermelhos de tanto chorar. — O que aconteceu? Por que está assim? — Pergunto, preocupado. Ela levanta a cabeça, e seus olhos, cheios de tristeza, me fazem perceber o quanto ela está perdida também. — Não é nada… Só estou com saudades do papai e da mamãe. Me sinto tão sozinha. — Ela diz, com a voz embargada. Eu me aproximo e me sento ao seu lado, a abraçando com carinho. — Eu também sinto, pequena. Mas eu acredito que logo o coroa sai de lá. Me desculpe por não ser tão presente. Enquanto a abraço, uma sensação de responsabilidade me invade. Sinto como se tivesse falhado com ela, como se, de algum modo, as feridas dela também fossem minhas. As lágrimas dela são como um espelho das minhas próprias emoções reprimidas, e é difícil não me deixar consumir por essa tristeza que parece nos envolver cada vez mais. — Prometo que estarei mais por perto, pequena. Nós dois precisamos um do outro para enfrentar esses dias difíceis. — Digo, acariciando seus cabelos com ternura. Ela assente, mas seus olhos ainda refletem uma mistura de tristeza e gratidão. A saudade dos nossos pais está viva nela, e eu não sei o quanto posso ajudá-la a superar isso. Nos dias que se seguiram, eu tentei me esforçar para ser mais presente na vida da minha irmã. A rotina no morro seguia intensa, mas eu arranjava um tempo para estar ao lado dela, seja ajudando nos estudos ou apenas fazendo companhia, tentando ser o irmão mais velho que ela precisava. No entanto, todas as noites eram as mesmas. Antes, era apenas a insônia que me acertava, mas agora, todas as noites, os olhos julgadores de Maitê pairavam sobre mim. O nojo que ela me transmitiu, a repulsa que eu vi naquele olhar, estava se tornando uma sombra constante, uma presença sufocante. Cada olhar dela era como uma faca afiada cortando as camadas frágeis da minha paz. Estou na minha sala quando Sombra entra, interrompendo meu turbilhão de pensamentos. — Perdeu a mão, caralho? — Grito irritado, sem paciência. — Que isso, hein? A insônia tá te dominando. Já deu uma hoje para ver se passa esse estresse? — Ele diz, sem demonstrar preocupação. — Sabe, acho que eu já sei do que precisamos para relaxar. Vamos fazer um baile no sábado, o que acha? — Pergunto, tentando mudar de assunto e, ao mesmo tempo, dar um jeito de espantar essa sensação. — Porra, parceiro, agora sim tá falando a minha língua. — Ele responde, animado. — Então, bora agilizar as paradas, já estamos atrasados. A preparação para o baile estava a todo vapor. Enquanto Sombra e eu cuidávamos dos detalhes, a movimentação no morro aumentava, todos ansiosos pela festa que estava por vir. Sinto um calafrio quando vejo minha irmã se aproximar, com aqueles olhos pidões. — Eu vou poder ir, né? — Ela pergunta, fazendo um biquinho irresistível. — Por favorzinho, eu prometo me comportar. — Tá, tá, você vai. Mas se começar a passar vergonha, vou mandar os vapor te tirarem de lá. Estamos entendidos? — Sim, sim, eu prometo. — Ela diz, pulando em meu colo toda contente. — Ah… mais uma coisinha… você poderia me dar um dinheiro para comprar roupa e ir no salão? — Ela faz aquele biquinho que me deixa sem saída. — Lógico, pequena, o que é meu é seu. Ela sai toda saltitante pela casa, e eu fico pensando que ela precisa de mais amigas, alguém que a tire um pouco dessa solidão que parece assombrá-la. No outro dia, chego na pista do baile. A atmosfera está pesada de expectativa e animação. O som alto domina o ambiente, as luzes piscam, e as pessoas dançam ao ritmo do funk, como se aquela fosse a única forma de esquecer a dor. — Esse baile promete, hein! — Falo para Sombra, que está ao meu lado. — Com certeza, vamos aproveitar. Todo mundo tá ligado na parada. — Ele responde, animado. Enquanto a noite avança, mergulho na energia do baile, tentando deixar para trás as preocupações e as incertezas que me assombram. Mas, no fundo, sei que não posso fugir daquilo que está me consumindo. Sei que, mais cedo ou mais tarde, tudo voltará para me assombrar.