Narrado por Maitê
A aeromoça anuncia que chegamos ao Brasil, e uma mistura de sentimentos me invade. A memória da minha adolescência, quando jamais imaginei que sairia do Brasil, se mistura com os motivos que me forçaram a partir. É como se eu estivesse retornando ao mesmo tempo em que estava deixando algo para trás. Descemos do avião, pegamos nossas malas e nos dirigimos aos carros. Avisto o G3 estacionado e entro no veículo. O Rio, com sua beleza única, passa pela janela, e eu sou tomada por um sentimento ambíguo. A cidade parece uma constante, mas em mim, tudo está fora de lugar. Sinto falta de algo, mas não sei exatamente o quê. À medida que o carro avança pelas ruas, percebo que estamos nos aproximando da barragem do morro. A tensão começa a me consumir, e fecho os olhos, tentando respirar fundo. O ar dentro do veículo parece denso, como se o espaço estivesse se fechando ao meu redor. Cada minuto ali dentro é como se eu estivesse sufocando um pouco mais. Ao passarmos pela entrada do morro, noto algumas mudanças. A sinalização está mais moderna, e algumas ruas foram pavimentadas, mas a maior parte do lugar permanece igual. Vejo crianças brincando na rua, como se o tempo ali fosse mais lento, como se nada tivesse realmente mudado. As mesmas velhas fofoqueiras estão ali, sentadas nos seus lugares de sempre. Uma lágrima escorre involuntariamente pelo meu rosto. Não sei se é a saudade, a dor ou a frustração. Mas ela cai sem pedir permissão. — Vocês poderiam parar o carro? — Eu falo baixinho, como se soubesse que não deveria pedir isso. — Está tudo bem? — Eles perguntam preocupados, mas já parando o veículo. — Sim, só… quero ir andando. — Respondo, tentando soar firme, mas a sensação de descontrole dentro de mim é inegável. Desço do carro e o G3 instrui outro homem a levar o veículo até a casa do meu pai. O ar quente e abafado do morro invade meus pulmões, e é como se a atmosfera familiar misturada com a tensão de minha volta me deixasse completamente vulnerável. É um alívio e uma dor ao mesmo tempo. Eu deveria me sentir em casa, mas na verdade estou perdida. Caminho pelas ruas do morro, agora com o peso do retorno em cada passo. As ruas que um dia chamaram minha atenção com suas cores e sons, agora parecem carregadas de um significado profundo. As mudanças são evidentes, mas os elementos imutáveis, como as paredes desgastadas e os rostos conhecidos, ainda permanecem. Cada esquina parece carregar uma memória, cada parede grafitada, uma história não contada. A memória de meu irmão, Viktor, me atinge com força. Ele sempre esteve ao meu lado, nas melhores e nas piores horas. Nossos risos, nossas brincadeiras. A saudade é insuportável. Meus passos diminuem, meu corpo treme, e uma vontade de gritar toma conta de mim. Mas engulo o grito. Um suspiro profundo é tudo o que consigo soltar. A cada rua que passo, as lembranças me envolvem como fantasmas. Aquelas alegres, que pareciam simples, e aquelas dolorosas, que agora, com o tempo, são quase impossíveis de suportar. Quando menos espero, uma voz familiar me chama. — Maitê. Levanto os olhos e vejo seu Zé, o dono do bar onde eu e Viktor passávamos horas conversando sobre a vida, os sonhos e os medos. Ele olha para mim com um sorriso de quem entende mais do que eu gostaria que ele entendesse. Eu preciso dele agora mais do que nunca. Como sempre, seu Zé é o ponto de equilíbrio entre minha saudade e a realidade que me sufoca. Caminho até ele com passos pequenos, tentando controlar a respiração que insiste em falhar. Sento-me à mesa e, logo, ele aparece com um milkshake de ovomaltine. É como se o tempo tivesse retrocedido. A mistura do chocolate e do leite, a sensação de conforto que sempre senti ali, me traz de volta a um lugar onde eu ainda não havia perdido Viktor. Olho para a cadeira em minha frente, e a visão de Viktor ali, rindo e fazendo piadas sobre qualquer coisa, quase me faz acreditar que ele ainda está comigo. — Nada melhor que, após um dia cansativo, poder tomar um shake desses — ouço sua voz em minha mente, como um eco. Ele dizia isso tantas vezes, sempre com aquele sorriso lindo e sincero. Sinto os olhos queimarem. Eu me esforço para não chorar, para não deixar que as lágrimas escapem. A saudade que sinto é tão forte que minha garganta se fecha. — Você não tinha o direito de morrer antes de mim — sussurro para mim mesma, quase como uma acusação contra o destino. Meu olhar se perde no vazio, mas sinto que não estou mais sozinha. Alguém me observa. Eu levanto a cabeça e vejo um homem parado em minha frente, um olhar fixo sobre mim. Mas antes que eu possa desviar, Fumaça chega acompanhado de outra pessoa. Ele se apresenta como o novo líder do comando. Olho para ele sem dizer uma palavra, apenas aceno com a cabeça, um cumprimento breve e vazio. A mudança é palpável. O líder do comando que eu conhecia era o Morte. E agora, vejo esse estranho, que não consigo reconhecer, ocupando o lugar que deveria ser de alguém que sempre me foi próximo. Fumaça, com um olhar desconfortável, se afasta com o novo líder, mas antes de sair, o homem lança mais um olhar em minha direção e segue para o seu carro. Eu fico ali, em silêncio, enquanto G3 quebra o silêncio, dizendo: — Temos que ir, pequena. Seu pai está te esperando. Concordo com um aceno e, embora meu corpo esteja cansado, minha mente está em um estado de caos. Me levanto da mesa, deixando o milkshake pela metade. Uma sensação de desorientação me invade enquanto sigo G3 em direção à casa de meu pai. Ao nos aproximarmos da casa, percebo como ela está lotada. Pessoas estranhas, conhecidos que eu nunca quis encontrar. A vontade de simplesmente virar e ir embora é quase irresistível, mas sigo em frente. Não há mais volta. — Sério mesmo que achou que eu ficaria feliz com a casa cheia de gente estranha? — Falo, soltando uma gargalhada sem emoção. É mais uma defesa do que um riso genuíno. Ao entrar na casa, vejo o novo líder do comando novamente. Nosso olhar se encontra, mas não há palavras. Antes que eu consiga pensar em algo, Larissa e Talita correm até mim e me abraçam. Retribuo sem dizer nada, sem demonstrar o que estou realmente sentindo. — Meeeeu Deus, que saudades, pequena! Nos conte tudo! — Elas falam com tanta empolgação, como se eu tivesse acabado de voltar de um intercâmbio. — Olha lá, aquele de branco com Balenciaga na blusa, é dele que a gente sempre te fala, nosso futuro marido! — Elas continuam, alheias ao fato de que suas palavras são, na verdade, uma piada de mau gosto. Eu me lembro das fotos que vi. As malucas das minhas irmãs ficam com o mesmo homem e ainda acreditam que ele vai se casar com elas. Isso tudo chega a ser hilário. Vejo meu pai no canto da sala, observando-me de longe. Quando nossos olhos se encontram, não sinto nada. Não há acolhimento, não há afeto. Ele se aproxima de mim com um olhar firme, quase desafiador. — Não vai cumprimentar o seu pai? — Ele pergunta, sua voz carregada de uma cobrança que não consigo suportar. — Achou mesmo que fazer um churrasco para a minha chegada, com pessoas desconhecidas, era a melhor opção? — Eu respondo, a raiva tomando conta de mim. — Uma hora ou outra, você terá que se acostumar com eles — ele diz, seu tom frio como sempre. — Engraçado como todos vivem suas vidas como se meu irmão não tivesse sido ninguém. — Eu falo, as palavras saindo com a mesma intensidade de uma faca afiada. Ele explode, e seu grito preenche a sala. — Chega, caralho! Fazem quatro anos que seu irmão morreu, e você ainda não superou? Nada do que você fizer vai trazê-lo de volta, porra! — Ele grita, a raiva estampada em seu rosto. O silêncio que se segue é pesado, sufocante. Ele está certo, de certo modo. Mas as palavras dele soam como um golpe. Como se eu tivesse que abandonar meu irmão, como se ele nunca tivesse sido parte da minha vida. Como se eu devesse simplesmente seguir em frente. — Chega, Maitê — ele repete, agora com um tom mais baixo, tentando parecer compreensivo. — Você precisa seguir em frente. Se agarre às lembranças boas que temos do seu irmão. Não respondo. Não há mais nada a ser dito entre nós. Nos encaramos em silêncio, cada um carregando o peso de anos de desentendimentos não resolvidos. Sem uma palavra, me viro e me afasto. As vozes ao meu redor se tornam indistintas enquanto busco um lugar para me esconder. Como posso seguir em frente quando o passado ainda me persegue como sombras indeléveis?