Capítulo 3 – O peso da casa

O domingo amanheceu abafado, com o céu encoberto e o ar pesado. Helena acordou antes do despertador, como sempre. O corpo parecia seguir um roteiro automático, mesmo quando a mente implorava por pausa.

A mãe tossia no quarto ao lado, e Helena já sabia que o dia começaria com reclamações. Levantou-se devagar, os pés descalços tocando o chão frio, e foi até a cozinha. Preparou o café, separou os remédios, organizou a bandeja com o cuidado de quem já não espera reconhecimento.

— Está frio — disse a mãe, ao receber o café. — Você não sabe fazer nada direito.

Helena não respondeu. A voz da mãe era como um eco constante, uma trilha sonora amarga que ela havia aprendido a ignorar. Mas naquele dia, algo nela estava diferente. Talvez fosse o resquício do sorriso de Rafael, ou a lembrança da conversa na livraria. Talvez fosse apenas cansaço.

Enquanto lavava a louça, pensava no caderno que havia começado a escrever na noite anterior. As frases ainda estavam soltas, mas carregavam algo que ela não sabia nomear. Um desejo de existir, talvez. De ser mais do que filha, cuidadora, funcionária.

— Vai sair hoje? — perguntou a mãe, com a voz carregada de desconfiança.

— Trabalho na livraria, como sempre.

— Você vive mais lá do que aqui. Parece que gosta mais daqueles livros do que da própria mãe.

Helena sentiu o estômago revirar. A culpa era uma presença constante, como uma sombra que a seguia em silêncio. Sabia que a mãe estava doente, sabia que precisava dela. Mas também sabia que estava se perdendo aos poucos.

Saiu de casa às 8h20, com o coração apertado. A caminhada até a livraria era o único momento em que respirava sem medo. Mas naquele dia, o ar parecia mais denso, como se o mundo estivesse prestes a cobrar por cada suspiro de liberdade.

Ao chegar, seu Álvaro estava mais irritado que o normal. Jogou uma pilha de livros sobre o balcão e resmungou sobre uma entrega atrasada.

— Quero tudo organizado até o meio-dia. E sem conversa com cliente. Isso aqui não é salão de beleza.

Helena assentiu, sem discutir. Sabia que qualquer resposta seria usada contra ela. Foi direto para o estoque, onde se sentia menos visível — e, paradoxalmente, mais livre.

Por volta das 10h, ouviu o sino da porta tocar. O som era familiar, mas seu coração acelerou. Espiou pela fresta da estante e viu Rafael entrando. Ele olhava ao redor com calma, como quem procurava mais do que um livro.

Helena hesitou. Queria vê-lo, mas também queria se esconder. O peso da manhã ainda estava sobre seus ombros, e ela não sabia se conseguiria sustentar o olhar dele.

Rafael caminhou até a seção de literatura contemporânea e pegou um exemplar de “Tudo é rio”. Folheava com atenção, como se cada página fosse uma conversa.

— Helena? — chamou, ao vê-la se aproximar.

Ela sorriu, mas o sorriso não chegou aos olhos.

— Oi.

— Está tudo bem?

Ela hesitou. Queria dizer que não. Que a mãe estava pior, que o chefe a tratava como um robô, que ela se sentia afundando. Mas não disse nada disso.

— Só um dia difícil.

— Posso ajudar?

— Não aqui — respondeu, com um tom mais seco do que pretendia.

Rafael pareceu entender. Não insistiu. Apenas colocou o livro de volta na prateleira e disse:

— Se quiser conversar... estou por perto.

Ela assentiu, mas não respondeu. Voltou para o estoque com o coração em conflito. Queria correr atrás dele, dizer que precisava sim conversar, que estava cansada de carregar tudo sozinha. Mas não sabia como. Não sabia se merecia.

O resto do dia passou em silêncio. Seu Álvaro reclamava, os clientes vinham e iam, e Helena se escondia entre caixas e prateleiras, tentando organizar não apenas os livros, mas os próprios sentimentos.

Ao sair da livraria, Rafael estava do outro lado da rua, encostado em uma bicicleta. Ela parou por um instante, surpresa.

— Achei que já tivesse ido.

— Achei que você quisesse conversar.

Helena olhou para ele, depois para o chão. A vontade de se abrir era grande, mas o medo era maior.

— Não sei por onde começar.

— Começa pelo que pesa mais.

Ela respirou fundo. Olhou para o céu, que começava a escurecer, e disse:

— Minha mãe tem câncer. E me culpa por tudo. Pela doença, pela solidão, pela vida que ela não teve.

Rafael não disse nada. Apenas escutou. E isso, para Helena, já era muito.

— Eu cuido dela todos os dias. Trabalho, volto pra casa, ouço críticas, engulo o choro. E quando algo bom acontece... eu me sinto culpada.

— Por quê?

— Porque parece errado sentir alegria quando ela está sofrendo.

Rafael se aproximou, com cuidado.

— Você tem direito à sua vida, Helena. À sua dor. À sua alegria. Cuidar de alguém não significa desaparecer.

Ela sentiu os olhos marejarem. Queria acreditar naquelas palavras, mas não sabia como.

— Eu não sei quem sou fora disso.

— Então talvez seja hora de descobrir.

Ele estendeu um papel com seu número de telefone.

— Quando quiser conversar. Ou apenas respirar.

Helena pegou o papel com mãos trêmulas. Sorriu, pequeno. Mas verdadeiro.

Ao chegar em casa, a mãe estava sentada no sofá, com os olhos semicerrados.

— Demorou. Vai me deixar morrer aqui?

Helena entregou os remédios, preparou o jantar, ouviu as críticas. Mas algo nela havia mudado. Uma fresta de luz havia entrado. E mesmo que pequena, era suficiente para fazer o silêncio gritar de outro jeito.

Naquela noite, enquanto lavava a louça, pensou em Rafael. No modo como ele a escutou. Nas palavras que disse. E pela primeira vez em muito tempo, sentiu vontade de escrever de novo.

Pegou o caderno e escreveu:

“Talvez eu esteja aprendendo a respirar. Mesmo com o peso da casa.”

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