A chuva caía fina sobre Paris, tingindo de nostalgia as ruas de pedras antigas e vitrines iluminadas. Dentro do La Belle Lumière, um dos restaurantes mais elegantes da cidade, a atmosfera contrastava com o frio lá fora. O ambiente era aquecido pelo aroma de pratos sofisticados, pelo tilintar de taças de cristal e pelo murmúrio educado dos clientes endinheirados. Para Camila Duarte, no entanto, aquela noite era como qualquer outra — mais uma em que ela corria entre mesas com um sorriso ensaiado no rosto e os pés doendo nos sapatos baratos.
— Mesa sete, Camila. Cliente novo, cara fechada, pediu o cardápio sem nem olhar na sua cara. Boa sorte com esse aí. — murmurou Júlia, sua colega de trabalho, piscando com ironia. Camila pegou o cardápio de couro e respirou fundo. Ela estava acostumada com aquele tipo de cliente: homens de negócios, arrogantes e silenciosos, que a tratavam como invisível. Mas ela precisava do emprego. A mãe estava em casa, doente, e as contas se empilhavam sem piedade. Aproximou-se da mesa sete com passos firmes, sentindo o tecido apertado do uniforme colar na pele devido ao calor do salão. Quando chegou, o homem ainda não havia sequer tirado o sobretudo escuro. Ele estava inclinado para trás na cadeira de couro, uma taça de vinho tinto à frente, e olhos que a observaram com frieza — olhos que pareciam julgá-la em silêncio. — Boa noite, senhor. Gostaria de ver o cardápio da casa? — ela ofereceu com a voz neutra. Ele pegou o cardápio sem responder, mas seus olhos não saíram do rosto dela. Havia algo naquele olhar — não era interesse, nem desejo. Era… curiosidade. Camila manteve a compostura, mas um arrepio involuntário percorreu sua espinha. Não era comum sentir-se observada daquela forma. — Volto em alguns minutos para anotar seu pedido. — ela disse, virando-se para sair. — Camila, não é? — a voz dele a deteve. Grave, pausada, sem sotaque definido. Ela se virou devagar, surpresa. — Sim... senhor. — Está trabalhando aqui há quanto tempo? A pergunta a pegou desprevenida. Os clientes raramente queriam saber algo sobre ela — e quando queriam, normalmente era para flertar. Mas o tom dele era diferente. Frio. Como se estivesse analisando uma peça de xadrez. — Há quase um ano — respondeu, cautelosa. — Precisa de alguma recomendação? Ele a encarou por mais um segundo antes de desviar os olhos para o cardápio. — Não. Pode trazer o prato do chef. Sem entrada. E mais vinho. Camila assentiu e se afastou. Sentia os olhos dele queimando suas costas, e não sabia explicar por quê, mas algo naquele homem a deixava inquieta. Ele parecia... deslocado. Como se estivesse ali por um motivo que não tinha nada a ver com o jantar. Leonardo Aragon observou Camila até que ela desaparecesse pela porta da cozinha. Seu disfarce era impecável: nada de segurança, nada de terno italiano feito sob medida, nada de seu sobrenome em destaque. Apenas um homem comum, sentado em um restaurante onde ela jamais saberia quem ele realmente era. O irmão dela — o falecido Marco Duarte — havia trabalhado para um de seus concorrentes. Leonardo sabia de histórias. De rumores. E agora que Marco estava morto, Camila parecia ser a peça que faltava para desvendar o que de fato havia acontecido. Mas quando ele a viu pela primeira vez, não esperava encontrá-la... daquele jeito. Ela não era apenas bonita — era real. Tinha um olhar que misturava cansaço com orgulho. Os cabelos castanhos estavam presos em um coque improvisado, algumas mechas escapando e moldando seu rosto de traços suaves. Não usava maquiagem em excesso, nem tentava agradar ninguém. Era diferente das mulheres que costumavam se aproximar dele como abelhas famintas por mel. Talvez por isso, ele não conseguiu desviar o olhar. “Não se envolva”, alertou-se mentalmente. “Ela é apenas uma peça. Nada além disso.” Camila entregou o prato com a precisão de uma bailarina, evitando contato visual. No entanto, quando ele agradeceu — um murmúrio rouco, mas audível — ela o olhou por reflexo. E naquele instante, os olhos dele pareciam ter mudado. — Você não é francesa. — ele disse, de repente. — Não. Brasileira. — ela respondeu, com um sorriso rápido, já pronta para ir embora. — Paris é uma cidade difícil para quem começa do zero. — comentou ele, mais para si mesmo do que para ela. Camila parou. Aquilo a surpreendeu. Era raro alguém notar — ou se importar. — É. Mas a gente aprende a sobreviver. — ela respondeu, firme. — Posso trazer a sobremesa? Ele a observou por mais um instante e balançou a cabeça em negativa. — Não. Só a conta. Quando ela voltou com a conta, ele já havia deixado algumas notas dobradas na mesa. Camila pegou o dinheiro sem esperar gorjeta — mas ao desdobrar as cédulas, viu algo mais. Um cartão. Sem logotipo, sem nada. Apenas um número de telefone escrito à mão. E na parte de trás, uma frase: “Você não é invisível.” Camila ficou parada por alguns segundos, os dedos tremendo levemente. Quem era aquele homem? E por que, de todas as pessoas que passaram por sua vida, ele parecia ter enxergado o que ela passava tanto tempo tentando esconder?