Capítulo 3

O barulho insistente na porta fez Isabela erguer-se da cama ainda meio zonza. A claridade atravessava a cortina fina do quarto, e o relógio digital marcava pouco mais de sete da manhã.

— Já vai! — gritou, tentando não acordar Amélia e Enzo.

Abriu a porta com a respiração presa. O síndico, seu Benedito, estava ali — o homem magro, de feições austeras, com uma prancheta debaixo do braço e o cenho franzido.

— Isabela, bom dia. Me desculpe vir tão cedo, mas... já estamos com o aluguel vencido há dez dias, e como você sabe, o prédio está com algumas pendências. A dona Odete pediu pra reforçar o aviso.

Isabela respirou fundo. Não era a primeira vez, e provavelmente não seria a última.

— Eu entendo, seu Benedito. Eu tive alguns imprevistos, mas... até o final da semana eu consigo resolver. Pode dizer pra ela que vou pagar, sim?

O síndico suspirou, balançando a cabeça com cansaço.

— Sei que você é uma moça direita. Mas a dona Odete tá impaciente. Eu só sou o recado, viu?

Isabela assentiu e agradeceu antes de fechar a porta com cuidado.

Encostou-se à madeira por um segundo. Sentiu aquele velho nó subir pela garganta, mas não o deixou explodir. Estava se tornando especialista em engolir angústias.

No quarto, ouviu Enzo cantarolando uma música infantil. Ele estava se vestindo para a escola — provavelmente tentando encontrar o par da meia favorita. Era só um menino de nove anos, e mesmo assim, parecia já saber que havia coisas demais pesando sobre os ombros da irmã.

Na cozinha, preparou um achocolatado e uma fatia de pão com margarina pra ele. O menino entrou na sala com a mochila nas costas e os cabelos bagunçados.

— Isa, eu vou precisar de doze reais hoje. É pro passeio do museu, a professora falou que vai ser legal.

Ela disfarçou a expressão de espanto.

— Doze reais?

— É. Eu posso não ir também... Não tem problema — disse ele, já recuando.

— Não fala assim, Enzo. Vai sim. A mana dá um jeito — respondeu, forçando um sorriso que doía.

O telefone celular dela tocou logo depois que Enzo saiu para a escola. Isabela atendeu sem olhar o número.

— Alô?

— Dona Isabela? Aqui é a doutora Marcela, do posto de saúde.

Seu coração deu um pulo. Sempre que a médica ligava, era algo delicado.

— Oi, doutora. Aconteceu alguma coisa, os exames da minha mãe?

— Não, está tudo bem Isabela. Mas recebi hoje a resposta da secretaria sobre o novo remédio que solicitamos para o controle respiratório dela. Infelizmente, foi negado. A justificativa é que ele não faz parte da lista de distribuição gratuita.

— Mas... o outro não está mais fazendo efeito.

— Eu sei. Eu tentei. Mas sem aprovação, vocês terão que comprar diretamente no laboratório. Vou mandar por e-mail a orientação e o nome do remédio, tá bom?

— Tá... tá sim. Obrigada, doutora.

Desligou a ligação com a sensação de que a terra havia se aberto aos seus pés. Correu até o pequeno notebook que usava para trabalhos como freelancer, o mesmo que travava com frequência, mas ainda servia para pesquisas.

Digitou o nome do remédio, mãos trêmulas. A página do laboratório abriu devagar, como se soubesse que vinha com más notícias.

R$ 1.472,90. 30 cápsulas.

— Isso só pode ser brincadeira... — sussurrou.

Fechou os olhos, lutando contra o pânico que ameaçava aflorar. Aquilo era quase metade de tudo que ganhava num mês — isso se todos os bicos entrassem no prazo.

O barulho de uma notificação de e-mail a tirou do torpor. Mais uma cobrança. A terceira da semana.

Olhou para a sala pequena, onde a televisão ficava apoiada sobre dois caixotes. O sofá, que antes pertencia à vizinha de cima, era duro, mas limpo. As paredes precisavam de pintura. A geladeira apitava porque a porta não estava fechando direito.

E ali estava ela: Isabela Vasquez, vinte e cinco anos, com um irmão de nove anos para criar, uma mãe doente para cuidar, um ex parasita batendo à porta, e um mundo que não a esperava para nada.

Pensou em ligar para alguém. Mas quem? Os poucos amigos que restaram também lutavam para sobreviver. Seus tios moravam no interior da Bahia e já faziam muito só de mandar um pouco de farinha ou um tapete artesanal para vender.

Então respirou fundo, novamente. Não pela última vez naquele dia.

Vestiu a roupa de sempre — jeans, camiseta limpa e um casaco que já viu dias melhores. Pegou a mochila com os documentos e o caderno de contos, como se carregar palavras fosse uma forma de não desabar completamente.

— Não posso falhar hoje. Nem amanhã. Nem depois.

Saiu do apartamento com a cabeça erguida, mesmo que por dentro tudo gritasse.

Na rua, São Paulo seguia impiedosa, com sua pressa indiferente e seus ônibus lotados. Mas ali, no meio de tudo, havia uma mulher tentando ser inteira para os outros, mesmo estando em pedaços por dentro.

O céu cinzento parecia pesar sobre seus ombros enquanto Isabela descia os degraus do prédio com passos apressados. A rua já fervilhava com buzinas, barracas de pastel, vendedores ambulantes e o cheiro de escapamento. Ela apertou o passo. Precisava pegar o ônibus antes do horário de pico. Estava atrasada para o serviço temporário de revisão em uma gráfica na zona leste, seu trabalho de segunda e terça feira e o atraso implicaria desconto — mais um.

Durante o percurso, tentou evitar pensar no número que ainda ecoava em sua mente: R$ 1.472,90. A quantia que separava sua mãe de um tratamento eficaz. Pensou em Amélia, encolhida na poltrona da sala, os ombros estreitos subindo e descendo com esforço cada vez maior para respirar. Pensou em Enzo, com seus sonhos de ser astronauta ou jogador de futebol, dependendo do dia.

A dor não era só financeira. Era de impotência. Uma mulher que carregava o mundo nas costas, sem lugar onde descansar.

Na empresa, o ambiente abafado era preenchido por pilhas de papel, cheiro de tinta fresca e conversas atravessadas. O ventilador girava lentamente no canto da sala, quase de forma simbólica. Isabela se sentou diante do computador antigo, os olhos doendo com a luz fraca do monitor. Digitava rótulos de produtos de limpeza enquanto pensava no que venderia primeiro: a televisão pequena ou o micro-ondas. Talvez pudesse tentar rifar algo pela internet... Não seria a primeira vez.

Durante o almoço, abriu um pacote de bolachas água e sal. Era tudo o que tinha levado. Engolia com goles de água para disfarçar o gosto da fome. Um colega ofereceu parte de um salgado.

— Tá de boa, Isa? Tá mais pálida que o papel higiênico da empresa.

Ela riu, fraca.

— Só cansada, Jorge. Obrigada.

Quando o expediente terminou, o cansaço parecia tatuado em suas pernas. Pegou o ônibus lotado de volta para casa, equilibrando-se entre sacolas e corpos suados. Sentia o peso de cada centavo que não tinha. A cada farol fechado, lembrava do aluguel, do remédio, da escola do Enzo, do passeio, das contas. E do medo de falhar mais uma vez.

Chegou em casa já à noite. Enzo fazia a lição de casa à mesa da cozinha, com os pés balançando no ar e o lápis entre os dentes.

— Tô tentando escrever sobre meu herói, mas não sei quem é — disse ele, franzindo a testa.

Isabela sorriu, com ternura.

— Pode escrever sobre a mamãe. Ela é uma guerreira, né?

— Ela só dorme. Eu queria escrever sobre alguém que salva as pessoas.

Ela se calou. Talvez um dia ele entendesse que algumas pessoas salvam o mundo só por continuarem de pé. Mesmo invisíveis.

Enquanto lavava um copo, o celular vibrou no bolso do casaco. Estranhou o número: começava com DDD internacional. O coração apertou. Pensou em algum trote, ou cobrança. Mas atendeu mesmo assim.

— Alô?

— Isabela? Que bom que consegui falar com você! Aqui é o professor Mauro, lembra de mim?

Ela levou um segundo para reconhecer a voz — grave, educada, com um leve sotaque carioca. Ele havia sido seu professor de línguas do curso, quando tudo ainda parecia possível.

— Claro, professor! Nossa, há quanto tempo... Tudo bem?

— Melhor agora que falei com você. Desculpe ligar tão de repente. Consegui seu número com um ex-colega seu. Precisava saber se você ainda tem disponibilidade pra trabalhos como intérprete?

Isabela piscou, surpresa.

— Interprete? Sim... sim, claro. Quando seria?

— Essa semana. É urgente, por isso pensei em você. Uma pessoa extremamente importante. Um sheik árabe estará no Brasil para uma rodada de reuniões empresariais e culturais. Coisa grande. E ele precisa de um intérprete pessoal. Fluente em inglês e espanhol, e com noção de árabe, mesmo que básica. Você ainda pratica?

— Sim... Mas posso revisar tudo em dois dias. Ainda tenho meus cadernos.

— Excelente. É um serviço curto, cinco dias apenas. Mas bem remunerado. A empresa pagará quinze mil reais pelo período, com vestimenta e alimentação incluso. Preciso dar uma resposta amanhã cedo.

Isabela ficou em silêncio. Por um instante, achou que estivesse ouvindo errado.

— Quinze mil?

— Isso mesmo. É claro que precisa estar disponível para começar já na segunda-feira. Vamos dar um treinamento rápido. Me diz que você topa, Isabela.

Ela se encostou na parede da cozinha. O som da geladeira defeituosa parecia distante agora. Quinze mil reais. O remédio da mãe, o aluguel atrasado, a escola de Enzo... uma semana.

— Eu topo, professor.

— Perfeito! Amanhã te mando os detalhes.

Ela desligou, atônita. Enzo ainda estava escrevendo.

— Mana? Posso escrever sobre você?

Isabela olhou para ele. Os olhos grandes e escuros, como os dela. O mundo inteiro ali dentro.

— Pode sim, meu amor. Escreve. Mas escreve bonito, hein?

E naquele instante, entre as rachaduras do caos, algo dentro dela começou a florescer.

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