O despertador tocou às 5h45. Isabela apertou o botão com raiva contida, mas não se deu ao luxo de mais cinco minutos. Já tinha aprendido que cada minuto de atraso custava caro — às vezes, o emprego, às vezes, a paciência de quem dependia dela.
Levantou-se em silêncio. No quarto ao lado, a mãe dormia sob cobertas finas demais para o frio que fazia naquela manhã paulistana. Tossia leve, um som quase constante nos últimos meses. O diagnóstico de fibrose pulmonar chegara devagar, como tudo em sua vida. Primeiro uma tosse, depois o cansaço... até que não havia mais como negar. — Vai melhorar, mãe — sussurrou ao entrar no quarto com passos leves, ajeitando o lençol sobre os ombros da mulher de rosto envelhecido pelo tempo e pelas dores da vida. Na cozinha, o café era passado à moda antiga. Isabela abria a janela para deixar o cheiro amargo se misturar ao ar frio da manhã. Ainda vestia a camiseta de algodão e o short velho, mas seu olhar já carregava o peso de quem pensava em mil coisas ao mesmo tempo. Precisava pagar o gás. O aluguel. O remédio que o SUS ainda não tinha entregue. O leite especial. E ainda havia Enzo, seu irmão, de outro pai, outro que foi embora e nunca mais voltou, as mulheres Vasquez tinham dedo podre para o amor. Um bom garoto, mas distraído. Um pouco preguiçoso quando se tratava da casa, mas estudioso, ao menos. E isso bastava. — Isa, tem pão? — murmurou ele, entrando de mochila nas costas e cabelo desgrenhado. — Tem. Mas só se prometer que vai lavar a louça hoje. — De novo? Eu lavei terça... — Hoje é quinta, Enzo. E terça foi só o copo que você usou. Ele resmungou algo, mas pegou o pão. — Tá bom, tá bom... Lavo. Juro. Ela sorriu de canto. Aquela era a parte boa do dia: ver que, apesar de tudo, ainda existia algum tipo de normalidade naquilo tudo. Depois de cuidar da mãe, deixar o café pronto, separar os remédios e pegar as contas na mesa para ver o que poderia ser adiado, Isabela correu para o quarto. Vestiu sua roupa com pressa: calça preta de tecido, camisa social clara, o mesmo blazer azul-marinho que usava havia três anos. Estava um pouco apertado nos ombros, mas ainda passava por apresentável. Pegou a bolsa, o caderno de anotações e saiu. O ônibus veio lotado, como sempre. Isabela ficou espremida entre um homem com fones de ouvido e uma senhora com sacolas de feira. A cada curva, precisava se equilibrar como uma dançarina de circo. O calor humano misturado ao cheiro de escapamento a fazia fechar os olhos por segundos e fingir que estava em outro lugar. Talvez Paris. Ou Istambul. Um lugar com janelas largas, livros antigos e cheiro de especiarias no ar. Mas logo o barulho do cobrador a trouxe de volta à realidade. Desceu duas quadras antes do ponto, porque a catraca emperrava e ninguém se mexia. Trabalhava num pequeno escritório de tradução técnica. Nada glamouroso. A empresa terceirizava serviços para editoras e escolas. Isabela fazia de tudo: revisava textos, atendia ligações, servia café, preenchia planilhas. A antiga assistente pediu demissão e, com isso, ela acumulou duas funções pelo mesmo salário. Toda quarta e quinta e sábado ela estava aqui sem falta. Mas sorria. Sempre sorria. Porque sorrir era mais barato do que antidepressivos. — Bom dia, Isa — disse Marlene, a colega da recepção. — Bom dia, Mar. Tudo calmo? — Calmo até você ver o que te deixaram em cima da mesa... Isabela revirou os olhos antes de entrar na pequena sala que dividia com mais três funcionários. Tinha uma pilha de documentos, dois e-mails com prazo vencido e uma mensagem do chefe pedindo “mais agilidade”. Ela respirou fundo, sentou-se e começou a digitar. O dia passou como uma sequência de tarefas mecânicas. Mal teve tempo de almoçar. Comeu um sanduíche escondido entre uma ligação e outra. Às cinco da tarde, seus olhos já ardiam. Às sete, já em casa, lavou o rosto, ouviu o relato animado de Enzo sobre uma palestra do dia mundial da água na escola. Ela sorriu, mesmo cansada. — Fico feliz que tenha gostado. Quando ele saiu do quarto, ela se encostou na parede e deixou o corpo escorregar até o chão. Ficou ali por alguns segundos. Olhos fechados. Corpo tenso. Não era só cansaço. Era uma exaustão profunda, de quem segurava tudo com as mãos e ainda assim sentia que tudo podia cair a qualquer momento. O telefone tocou. Não atendeu. Tinha medo de contas. De cobranças. Mas principalmente de Diego. De qualquer coisa que lembrasse que o amanhã viria. Fechou os olhos por um instante, tentando lembrar do último momento em que se sentiu leve. Livre. Quase não se recordava. Talvez quando lia algum romance antigo... ou antes de conhecer Diego. A sopa fervia lentamente, espalhando um aroma suave de legumes pela cozinha estreita. Isabela mexia com calma, os olhos fixos no movimento do caldo, como se aquele gesto rotineiro fosse uma espécie de meditação. Atrás dela, a torneira pingava ritmadamente, como se o tempo quisesse lembrá-la de sua pressa. Ao ouvir a tosse seca da mãe vinda do quarto, desligou o fogo e pegou a tigela de louça branca com as bordas lascadas. — Mãe, tá acordada? — perguntou baixinho, entrando no cômodo. — Tô sim, filha... só descansando um pouco os olhos — respondeu Dona Amélia com a voz rouca, um sorriso fraco nos lábios. Isabela se sentou na beirada da cama e soprou suavemente a sopa antes de oferecer a colher à mãe, que aceitou com a lentidão de quem já não tinha mais pressa. — Tá com gosto de cenoura — comentou a senhora. — Porque é cenoura, mãe. Não tinha muito mais o que colocar hoje — Isabela respondeu com um meio sorriso, tentando parecer leve. — Tá gostosa. Quando você cozinha, sempre fica. Isabela abaixou o olhar, tentando conter a emoção que ameaçava escorrer pelos olhos. Aquela mulher magra, de cabelos grisalhos ralos e pele morena manchada pelo tempo, fora um dia o centro do mundo dela. E agora parecia cada vez mais distante, como uma vela apagando aos poucos. — Você tá tomando direitinho os remédios, né? — Tô sim, minha filha. Mas a gente precisa ver se aquele remédio novo chegou no posto. Acho que esse aqui já tá fraco. Isabela assentiu, embora soubesse que provavelmente não havia chegado. Ou se tivesse, não era para elas. Era sempre assim. — Amanhã eu passo lá no caminho do trabalho. Prometo. — Você se mata tanto, Isa. Tão nova... E já carrega o mundo nas costas. Ela respirou fundo, como quem engole as próprias dores junto com o ar. — A senhora faria o mesmo por mim. Depois que ajudou a mãe a se deitar novamente, ajeitou as cobertas e apagou a luz. Ficou sentada um pouco no escuro, só ouvindo a respiração lenta da mulher. Aquele som era quase uma oração — enquanto estivesse ali, tudo ainda fazia sentido. Já era mais de nove quando foi até o banheiro. Tomou um banho rápido, de água morna que variava entre o quase frio e o escaldante, dependendo do humor do chuveiro velho. Enxugou-se apressada e vestiu uma camisola simples. Enzo, estava deitado no sofá assistindo a vídeos de desenhos . Às vezes, ela temia pelo futuro dele. Sentou-se na cama com o velho caderno de capa vermelha no colo. Era ali que ela escrevia, quando o mundo parecia demais. Contos curtos. Pequenos escapes. Escreveu: > “A mulher do deserto não chorava. Seus olhos já tinham visto mais do que podiam suportar. Mas quando o vento tocava sua pele, lembrava-se de quem foi. E por um segundo, sorria.” Fechou o caderno com cuidado. — Enzo, já chega, escovar os dentes e cama. O menino murmurou mas obedeceu sua irmã, escovou os dentes, desligou o velho celular e foi para seu colchão ao lado do dela no segundo quarto da casa. E pela primeira vez em semanas, ela permitiu-se deitar sem pensar em todas as dívidas. Apenas por alguns minutos. Mas a calma não durou. Um barulho na porta da frente a fez se erguer num salto. Era apenas o vento batendo a janela da sala. Suspirou, voltou a se deitar e puxou o cobertor até o queixo. O teto do quarto tinha uma mancha de infiltração que ela contava como estrela. Era sua forma de adormecer. Uma, duas, três... — Amanhã é outro dia — sussurrou para si mesma, com os olhos pesados. Do outro lado da cidade, os primeiros pingos de uma garoa fina começavam a cair. Mas, naquela noite, Isabela dormiu sem chorar.