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Dias depois
Ela chegou à empresa mais pálida do que nunca. Os olhos inchados, as olheiras profundas, os ombros curvados como quem carrega o peso de um mundo em ruínas. Mas ainda assim, Isabella Ravena caminhava. Orgulhosa. Ferida. De pé.
Eu a vi cruzar o saguão principal como se estivesse em transe. Seu corpo estava ali, mas a alma parecia ter ficado entre as cinzas da mansão ou nas salas frias de alguma delegacia. Não hesitei em me aproximar. O momento era precioso.
— Isabella — chamei com suavidade, mas firmeza.
Ela ergueu os olhos para mim. Havia dor neles. E uma vulnerabilidade crua que quase me fez hesitar.
— Senhor Navarro…
— Por favor, Rafael. Não estamos em audiência. — dei um pequeno sorriso. — Só queria saber… como você está.
Ela hesitou, olhando ao redor como se sentisse que aquele não era um lugar para fraquezas.
— Aqui não é… o lugar — murmurou.
— Então vamos encontrar um que seja. — dei um passo à frente, com cuidado. — Que tal um chá? Depois do expediente. Só conversar. Nada de negócios. Eu insisto.
Ela respirou fundo. Como se lutasse contra a vontade de desabar ali mesmo.
— Tudo bem. Mas só um chá. Não prometo ser boa companhia.
— Só precisa ser você.
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Mais tarde, em uma pequena cafeteria discreta, afastada do centro
Ela chegou com um casaco cinza, os cabelos presos em uma simplicidade comovente. Sentei-me antes dela e pedi o chá mais suave do cardápio. Quando ela se sentou, por um momento ficou apenas olhando para a xícara, como se ali estivessem todas as respostas que ela não encontrava.
— Sabe o que é mais estranho? — começou com a voz baixa, apertando as mãos. — Como tudo pode desmoronar tão rápido. Um dia você está jantando com seu pai, fazendo planos, rindo de besteiras. No outro… está apagando o fogo da casa onde passou toda sua infância. Tentando acalmar a polícia. Abraçando um homem que sempre foi sua rocha… tremendo como uma criança assustada.
Eu não disse nada. Apenas a ouvi. Como alguém que oferecia silêncio quando o mundo só sabia gritar.
— Minha mãe morreu quando eu tinha dez anos — ela continuou, a voz embargando. — Câncer. Um tipo raro e agressivo. Foi tudo muito rápido. Um mês ela estava dançando comigo na sala… no outro… eu segurava a mão dela no hospital, ouvindo aquele maldito bip desacelerar.
Ela respirou fundo, os olhos brilhando com lágrimas contidas.
— Depois disso… foi só eu e ele. Meu pai. Israel Ravena. As pessoas o julgam por tanta coisa, mas ele foi meu herói. Ele me ensinou a andar de bicicleta, a fazer contas de cabeça, a mentir para o medo. Trabalhou feito um louco, dia e noite, para me dar tudo. Me colocou nas melhores escolas. Dormia no chão da construtora quando não dava tempo de voltar para casa...
— Deve ter sido… um homem extraordinário. — eu disse, com voz baixa e calculada.
— Ele é. — ela corrigiu, ainda que frágil. — Mas agora... tudo isso. As empresas. A casa. As acusações. Ele diz que está sendo acusado de novo, como anos atrás, quando supostamente tomou tudo do seu antigo sócio. Foi traído por mentiras, sua honra, seu caráter, Rafael. Tiraram tudo dele uma vez. E agora parece que querem fazer isso de novo. Mas ele não tem forças para lutar como antes.
Ela finalmente deixou uma lágrima escorrer. Eu alcancei um guardanapo, entreguei sem dizer nada.
Fiquei em silêncio por alguns segundos, depois disse com o tom mais sereno que pude reunir:
— Às vezes, Isabella, a vida parece injusta porque esconde o que está por trás das cortinas. Mas… você é forte. Você é a parte boa dele. E eu prometo… que não vai enfrentar isso sozinha.
Ela me olhou com surpresa. E por um segundo, eu vi. Ela acreditava em mim. Ela realmente acreditava naquele "Rafael Navarro". Na minha preocupação. Na minha ternura. E isso… me deu nojo de mim mesmo.
Mas também… me deu poder.
Porque quanto mais ela se abria, mais frágil ficava.
E quanto mais frágil, mais fácil seria… destruir o homem que a criou.
Naquele instante, entre goles de chá e lágrimas mal contidas, ela sussurrou:
— Desculpa… — disse ela, com um sorriso frágil. — Não era minha intenção transformar esse chá em uma sessão de desabafo.
— Não se desculpe. — respondi com a voz baixa, envolta em uma falsa ternura. — Você precisava disso. Às vezes, guardar tudo só faz a dor apodrecer por dentro.
Ela assentiu. Seus olhos ainda estavam marejados, mas havia ali uma centelha de alívio. Pequena, mas presente. Eu a observei por alguns segundos em silêncio, antes de me inclinar ligeiramente sobre a mesa.
— Isabella… sei que talvez não seja o momento ideal, mas há algo que preciso compartilhar com você.
Ela levantou o olhar, atenta.
— Estamos prestes a assumir um novo caso. Um processo de alto nível, envolvendo uma grande corporação estrangeira que está expandindo território no Brasil. O caso é denso, envolve bilhões, acordos de fusão, cláusulas obscuras, espionagem industrial, conflitos de interesse... — fiz uma pausa dramática. — E honestamente… não vejo ninguém mais capacitada para assumir isso além de você.
— Eu…? — Ela piscou, surpresa. — Mas… com tudo isso acontecendo… será que eu consigo?
Me aproximei mais um pouco, minha voz abaixou, suave, como um veneno doce.
— Eu acredito em você. Não estou te oferecendo esse caso só por sua competência — embora isso seja inegável. Estou te oferecendo porque acho que, nesse momento, ocupar a mente pode ser… um alívio. Um norte. Uma razão para continuar.
Ela ficou em silêncio, e por um instante, vi algo se acender por trás da dor — foco, talvez. Determinação. Um propósito, mesmo que momentâneo.
— Pode me mandar os arquivos amanhã? — ela perguntou, com a voz firme, como quem tenta se manter de pé no meio do naufrágio.
— Estarão em sua mesa às oito em ponto — garanti, com um leve sorriso.
Ela retribuiu o gesto, ainda triste, mas com um novo brilho nos olhos. Levantou-se, ajeitando a bolsa no ombro.
— Obrigada por me ouvir, Rafael. De verdade.
— Sempre. — respondi. — Você é importante aqui. Não apenas como advogada… mas como pessoa.
Ela assentiu, emocionada. E então se afastou lentamente, deixando um rastro de perfume e fragilidade pelo ar.
Fiquei ali, observando a xícara dela ainda com um pouco de chá. Peguei-a com calma e a encostei nos lábios, como se pudesse saborear a dor que ela acabara de despejar ali.