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Capítulo 1 — O Baile da Primavera
Eu nunca gostei de bailes. São reportagens difíceis: pouca luz, muito perfume e um mar de sorrisos que significam exatamente o contrário do que mostram. Mas, naquela noite, aceitei o crachá de imprensa e a gravata torta porque me prometeram duas coisas que jornalista algum recusa: acesso total — e um segredo. O Palácio das Magnólias abria os portões como se soltasse um suspiro antigo. A fachada, recém-restaurada, brilhava sob fileiras de lamparinas. Do lado de dentro, a orquestra atacava um bolero moderno, as cordas dançando devagar, como quem conhece a pressa dos ricos e a desdenha. Mulheres atravessavam o mármore com vestidos de seda que lembravam água em movimento. Homens se cumprimentavam medindo o peso um do outro pelo aperto de mão. Prendi o crachá no bolso interno do paletó. “Rafael Duarte, jornalismo investigativo.” Um título grande para uma assinatura pequena. Eu tinha uma pauta: o acordo silencioso entre três famílias que, juntas, decidiriam o destino de um porto e de uma eleição. E tinha um nome que, nas últimas semanas, surgia em todas as conversas ditas em voz baixa: Helena Padilla. Apareceu como boato, cresceu como sombra, ganhou legenda de milagreira — ou de maldição, dependendo de quem cochichava. “Ela resolve.” “Ela destrói.” “Ela entra e as coisas acontecem.” Eu me acostumei a desmontar mitos. Não estava preparado para ver um mito entrar pela porta principal. Antes dela, no entanto, veio a Marquesa Camila de Alencar, que não é marquesa de nada além do próprio sobrenome, mas aprendeu a transformar a palavra em coroa. Aproximou-se de mim com um sorriso de publicidade. — Duarte — disse, como se fôssemos velhos amigos. — Hoje você vai escrever a matéria da sua carreira. — Só se me contarem a verdade — respondi. — Verdade é uma palavra pesada para uma noite tão leve — ela riu. — Venha, vou te apresentar ao anfitrião. Caminhamos pela escadaria. De cima, a sala principal parecia um mosaico: joias em rubi, taças faiscando, risos que estouravam como bolhas em champanhe. No topo da escada, antes de virarmos à direita, um quadro me deteve. Uma mulher em três quartos, olhar de lado, vestido vinho, um anel grande na mão esquerda. Pintura do século XIX, moldura dourada. A legenda dizia: “Dama Anônima, coleção privada.” Não era a semelhança perfeita que me intrigou — retratos de salão repetem belezas como se seguissem receita. O que me prendeu foi o gesto de dedos, o mesmo que eu veria minutos depois. O anfitrião, Conde Victor Salazar, nos recebeu com um abraço que era quase um golpe de jiu-jitsu social. — Rafael! Admiro seu trabalho — disse, como todos os que gostariam que eu admirasse o deles. — Espero que a noite renda boas notas. — Já rendeu — respondi, olhando por cima do ombro dele. A orquestra mudou para um tango. Foi quando o salão ficou um pouco mais silencioso. É curioso como o silêncio se comporta em lugares assim: não é ausência de som, é uma atenção que se debruça. E toda a atenção se debruçou sobre a mulher que atravessou a porta ao fundo. Não foi a beleza. Beleza, ali, era abundância. Foi a maneira como ela pareceu desacelerar a sala, como se o tempo a obedecesse. Vestido negro sem brilho, um corte que deixava os ombros à mostra e pedia postura. Cabelo preso num coque alto, duas mechas soltas como descuido ensaiado. Nos lábios, um vermelho que não pedia licença. E no dedo, um anel de rubi que devolvia à sala um clarão íntimo, como se contasse um segredo só para quem soubesse enxergar. — Ela — disse Camila, desnecessária. — A mulher do momento. — Nome? — perguntei, só para ouvir como soava em voz alheia. — Helena Padilla. Tantas vezes eu já havia escutado, mas foi como se o nome só ganhasse corpo naquele instante. Acompanhei-a com os olhos. Não caminhava — marcava território. Cumprimentava sem se curvar; sorria sem entregar os dentes. Passou pelo Conde Salazar com um toque rápido no braço, um gesto pequeno que fez o homem de mil concessões parecer um rapaz convocado à diretoria. — Preciso falar com ela — falei. — Todos precisam — Camila respondeu, sem disfarçar o azedume. — Boa sorte. Desci um degrau, depois outro, calculando a rota para interceptá-la. O salão tinha modos de labirinto: toda diagonal encontra um obstáculo. Um garçom tropeçou em mim, uma taça se equilibrou milagrosamente, risos explodiram no canto esquerdo. Quando me desenvencilhei, Helena já estava no centro, onde o maestro levantava o arco como quem exibia um troféu. — Senhora Padilla — disse o Conde, oferecendo-lhe a mão. — O salão é seu. Ela fez um leve aceno, sem aceitar nem recusar. O gesto de dedos — o mesmo do retrato — desenhou um círculo invisível ao redor dela. Não sei explicar como certos detalhes prendem o olhar da gente. O anel brilhou e, por um segundo, eu tive a sensação absurda de que a pedra respirava. A música recomeçou. Um par surgiu do nada e ocupou a pista. Helena não dançou. Observou. E não havia nada de passivo no verbo, quando aplicado a ela. Era uma observação que ordenava: “façam.” E fizeram. Os acordos que eu tinha vindo caçar começaram a se mover como peças num tabuleiro. Notei três homens se reunindo junto ao bar. Dois deles eu conhecia de dossiês: um deputado que jurava não beber, um industrial que jurava não ser político. O terceiro, estrangeiro, gesticulava com parcimônia. Olhei para Helena. Ela assentiu, quase imperceptível, na direção deles. O estrangeiro levantou a taça. Brindaram a algo que ainda não tinha nome. — Você vê? — uma voz sussurrou no meu ombro. Virei-me. A Marquesa. — Vejo. — Então escreva. Mas cuidado com o que decide acreditar. Deixei-a com o conselho e atravessei o salão em direção ao bar. Não cheguei lá. Uma mulher interceptou meu caminho, não a Helena — uma secretária elegante, crachá de organização preso ao vestido. — Senhor Duarte? A senhora Padilla gostaria de falar com você — disse, com a neutralidade de quem anuncia a previsão do tempo. O coração deu um passo em falso, desses que a gente disfarça ajeitando o paletó. — Agora? — Agora. Fui conduzido a um corredor de boiseries claras. Um camarim improvisado com um biombo de seda servia de antessala. A secretária abriu a porta e me deixou. O perfume chegou antes dela — não doce, mas quente, com notas de algo que lembrava especiarias e brasa. Helena estava de costas, observando-se num espelho antigo que multiplicava a sala em molduras. — Senhor Duarte — ela disse, sem virar, e eu me incomodei com o fato de que eu ainda não havia me apresentado. — Precisa mesmo escrever sobre mim hoje? — Eu escrevo sobre fatos. A senhora parece produzi-los. Ela se virou. De perto, a beleza se tornava menos sobre equilíbrio de traços e mais sobre o domínio deles. Os olhos não eram claros nem escuros; eram atentos. O rubi, de perto, tinha inclusões como veias. O anel me lembrava algo que não alcançava. — Fatos são versões com dinheiro — ela disse. — E dinheiro muda de dono. O que você quer saber? O impulso foi perguntar tudo. Quem a financiava, de onde viera, se aquele anel tinha passado por dedos mais antigos que o nosso século. Em vez disso, disse o que todo jornalista honesto se obriga a dizer de vez em quando: — Não sei ainda. Só sei que todos parecem girar ao seu redor. — Não é mágica — ela sorriu, sem sorriso. — É matemática. Pessoas fazem contas, Rafael. Eu apenas mostro a elas onde o resultado pode ser maior. E, de vez em quando, onde o prejuízo será inevitável. — E hoje? O que mostra? — Que ninguém gosta de perder. — Ela se aproximou um passo, sem me tocar. — Você também não. — Não gosto de mentiras. — Mentiras são úteis — respondeu, como quem comenta um vinho. — O problema é quando acreditamos nas nossas próprias. Houve um silêncio curto. Eu ouvi a orquestra mudar o compasso, longe. Tive a sensação irritante de estar sendo entrevistado. Ela percebeu — claro que percebeu. — Vou te ajudar — disse, inclinando a cabeça. — À meia-noite, haverá um brinde que não foi combinado. Anote isso. Se você souber onde olhar, vai ver o começo de algo muito grande. E não estará escrito em lugar algum, ainda. — Por que me dizer? Ela tocou o anel, levemente, como quem checa a temperatura de uma xícara. — Porque você vai escrever mesmo assim. Prefiro que escreva com uma pista do que com um boato. — Um brilho rápido atravessou os olhos dela. — E porque, se você entender o que vai acontecer, talvez deixe de fazer a pergunta errada. — Qual é a pergunta errada? — “Quem é Helena Padilla?” — respondeu, devolvendo-me a mim mesmo. — A pergunta certa é: “por que todos precisam que ela seja alguém?” Quis responder com ironia, mas algo no jeito como ela pronunciou meu nome me desarmou. O som não era íntimo, mas era preciso. Como se ela praticasse os nomes que importam. — À meia-noite, então — falei. — À meia-noite. — Ela tocou a lateral do espelho, e por um segundo vi, refletida, a mulher do retrato do corredor. O mesmo gesto de dedos. A mesma distância do mundo. — Ah, e Duarte… — Sim? — Não publique a foto do quadro. Ainda não. — Por quê? — Porque as pessoas enxergam o que esperam ver. E hoje elas esperam ver um milagre. — Um sorriso de canto. — Não lhes dê um fantasma antes da hora. Saí do camarim com a sensação incômoda de que eu tinha feito muitas perguntas e obtido respostas demais que não respondiam nada. A secretária me reconduziu ao salão. A orquestra executava um tema alegre, mas o ambiente tinha uma tensão elétrica, dessas que arrepiam fios invisíveis. Procurei um relógio. Onze e quarenta e oito. Aproximei-me do bar onde os três homens conversavam. O deputado ria alto demais. O industrial bebia água, como quem limpa a consciência. O estrangeiro encarava o vazio com a serenidade dos que têm tempo. O Conde circulava as mesas como um general elegante. Onze e cinquenta e três. Vi Camila de Alencar posicionar-se ao lado de um grupo de mulheres, todas com joias que fariam chorar um museu. Ela falava baixo e gesticulava devagar, como quem hipnotiza. Quando me viu, brindou com o olhar. Tive vontade de rir: ali, até os olhares brindavam. Onze e cinquenta e nove. O maestro ergueu o arco. Os garçons surgiram como coreografia, taças equilibradas em bandejas que refletiam o teto. O Conde bateu levemente uma colher de prata contra o cristal. A música murchou ao redor do som. — Senhoras e senhores — a voz dele rolou, segura. — Um brinde à primavera, ao nosso encontro e… às novas parcerias. Virei o rosto, procurando Helena. Ela não estava no centro. Não estava ao lado do Conde. Estava no topo da escada, a mesma onde eu havia parado diante do retrato. Não fazia esforço para ser vista — e, mesmo assim, era impossível olhar outro lugar. Meia-noite. As taças subiram. O estrangeiro, que até então não pronunciara palavra, ergueu a dele um segundo antes dos demais. Um segundo é muito tempo quando todos medem o tempo juntos. Ele virou-se, levemente, para a direita — e a direita era onde estavam os homens do porto, os homens da eleição, os homens do futuro próximo. — À colheita — disse Helena, do alto, a voz só forte o suficiente para chegar onde devia. E, nesse instante, percebi o que eu não tinha vindo buscar: o brinde não tinha sido combinado porque era uma convocação, não uma celebração. Não se brindava a um acordo assinado; brindava-se ao início de uma dívida. Anotei três nomes. Tracei duas setas. Olhei de novo para o alto. O espaço na escada estava vazio. Quando dei por mim, eu estava correndo para o corredor dos retratos, sem saber exatamente por quê. Encontrei a moldura dourada, a “Dama Anônima”. O gesto de dedos, o anel. Inclinei o corpo para ler a pequena plaqueta ao lado, a que eu não havia notado antes. Letras miúdas, quase escondidas: “Doação da Família Padilla. Sem data.” O corredor ficou mais frio. Atrás de mim, a música recomeçou. No bolso, meu telefone vibrou com uma mensagem de número desconhecido. Abri. Só uma frase: “Viu o suficiente para não perguntar a coisa errada, Rafael?” Parei, no meio do corredor, entre um passado sem data e um presente com pressa. Eu ainda não sabia quem era Helena Padilla. Mas, pela primeira vez, entendi por que tantos precisavam que ela fosse alguém. E eu também.






