O silêncio da sala de descanso foi quebrado por um alarme estridente que ecoou pelos corredores como um grito de alerta. Helena levantou o olhar do prontuário que revisava, sentindo o frio familiar escorrer por sua espinha. O som do código vermelho era inconfundível: trauma grave, paciente em estado crítico chegando à emergência.
Ela saltou da cadeira, já puxando a touca do bolso do jaleco e prendendo o cabelo com agilidade. Seus passos ecoavam acelerados pelos corredores do hospital enquanto enfermeiros corriam em direções opostas e o rádio no peito de um residente anunciava: — Acidente na rodovia central! Motociclista em politraumatismo, instável! Está a caminho da cirurgia. Tempo estimado: dois minutos. No centro cirúrgico, Rafael Moretti já estava em pé, como se tivesse previsto a chegada. O olhar cortante, a postura ereta, o bisturi já em mãos mesmo antes de vestir a paramentação completa. Quando o residente entrou e deu o relatório, ele nem piscou. — Quero a sala dois pronta em três minutos — ordenou. — E chamem a enfermeira Helena Ferreira. Agora. A residente à sua frente hesitou. — Dr. Moretti, a equipe de rotina está... — Eu quero a Ferreira — interrompeu ele, com firmeza. — Ela entende meu ritmo. E eu não quero perder esse paciente. Aquelas palavras ecoaram como um trovão. Minutos depois, Helena entrou na antessala cirúrgica. Ainda colocava as luvas quando o viu já paramentado, os olhos fixos nos monitores que exibia os sinais do paciente que acabara de ser admitido. O coração batia fraco. Pressão em queda. Fratura exposta. Hemorragia interna. — Você me chamou? — ela disse, já sentindo a adrenalina subir. Rafael virou-se, e os olhos dele encontraram os dela como faísca em gasolina. — Sim. Eu preciso de alguém que me acompanhe no tempo exato. Cada segundo vai contar. Ela assentiu sem pensar. — Então vamos salvar uma vida. A porta da sala se abriu com estrondo, e a maca foi empurrada com pressa para o centro do ambiente iluminado. O paciente, um jovem de cerca de vinte e cinco anos, estava pálido, coberto de sangue e com a respiração irregular. A perna direita dilacerada. Um trauma abdominal que fazia a pele do ventre parecer prestes a se romper. — Está perdendo muito sangue! Pressão 60 por 40! — gritou um dos residentes, posicionando a máscara de oxigênio. Helena se moveu como uma extensão dos próprios instintos. Passou instrumentos, verificou os sinais vitais, conectou o soro e avisou: — O acesso está pronto. Temos uma janela muito pequena, Rafael. Ele não respondeu com palavras. Apenas olhou para ela por uma fração de segundo — e naquele olhar havia algo mais do que foco. Havia confiança. Admiração contida. Uma urgência que ia além da vida do paciente. — Bisturi — disse ele, e Helena passou o instrumento com precisão absoluta. A cirurgia começou como uma dança frenética. O som dos monitores era o metrônomo da tensão. Rafael abriu o abdômen com movimentos calculados, enquanto Helena absorvia e antecipava suas necessidades como se lesse seus pensamentos. — Está com hemorragia hepática — ele murmurou. — Suporte, rápido. — Ele olhou para ela. — Helena, pinça vascular, agora. Ela entregou o instrumento sem desviar os olhos. — Pressão em queda — anunciou o residente. — Ele não pode morrer. Não hoje — murmurou Rafael, baixo, entre dentes. O suor escorria por sua têmpora. Helena notava cada microexpressão dele — a tensão no maxilar, o olhar agudo, o pequeno tremor que disfarçava com habilidade cirúrgica. — Eu consigo — murmurou Rafael para si mesmo. — Eu consigo... — Você vai conseguir — disse Helena, firme. — Mas precisa confiar. Ele parou por um segundo. Aquela voz, calma no meio do caos, era como um ponto fixo em meio à tempestade. Rafael assentiu com um leve movimento de cabeça, e voltou à cirurgia com mais firmeza. — Está estabilizando. Ritmo cardíaco subindo — informou o residente. O sangue parecia escorrer por todos os lados, mas Rafael seguia implacável, suturando, controlando o dano, respirando fundo a cada movimento. Helena manteve o foco, mas por dentro, o coração batia como um tambor em marcha de guerra. Vê-lo ali, vulnerável, quase suando de medo pela vida de um estranho... era algo que ela nunca tinha imaginado presenciar. Ele parecia menos máquina. Mais humano. E, por algum motivo, isso a tocava mais do que ela gostaria de admitir. — Fígado estabilizado. Perda contida — anunciou Rafael após quase uma hora de tensão. — Finalizem os pontos. Vamos transferi-lo para a UTI. A equipe respirou aliviada. Um murmúrio de aprovação percorreu a sala. Mas entre Rafael e Helena, o silêncio foi diferente. Eles se encararam por um momento, os olhos dizendo o que as palavras ainda não podiam. Gratidão. Alívio. Respeito. Tensão. — Você foi... essencial — disse ele, retirando as luvas com lentidão. Helena o fitou com cuidado. Aquilo não parecia um elogio protocolar. Era mais profundo. Mais íntimo. — Você também — ela respondeu. — Mas... não se acostume. Ainda te acho um pé no saco. Ele sorriu, de canto. — Eu conto com isso. E enquanto o som do monitor diminuía, e a porta da sala cirúrgica se fechava atrás deles, a tensão entre os dois ainda permanecia. Não era mais apenas sobre técnicas e bisturis. Era algo que cortava mais fundo. Algo que ainda não sabiam como curar.