O som ritmado dos sapatos de Helena ecoava pelos corredores do hospital como um metrônomo de frustração. Ela caminhava com pressa, o jaleco pendendo de um dos ombros, a prancheta apertada contra o peito. O relógio marcava sete e cinquenta e cinco da manhã — cinco minutos para o início do plantão. Mas o que a incomodava não era o horário.
Era ele. Rafael Moretti. Dr. Perfeição, como algumas enfermeiras suspiravam nos corredores. Helena quase revirava os olhos sempre que ouvia os comentários. *“Ele é um gênio”, “Ele nunca erra”, “Você viu como ele segura o bisturi? Parece uma dança”*. Sim, ela já tinha visto. E sim, ele era mesmo tudo aquilo. Mas também era arrogante, controlador, metódico ao ponto de parecer que a humanidade havia sido extraída junto com o apêndice dos pacientes. E ela estava cansada disso. Abriu a porta do vestiário feminino com um empurrão e se jogou no banco de madeira ao lado dos armários. Tirou o jaleco amarrotado da bolsa, esticando-o com raiva antes de vesti-lo. — Odeio ele — murmurou, sozinha. — Odeio aquele olhar clínico que analisa tudo como se o mundo fosse um paciente anestesiado. Odeio aquela mania de corrigir tudo. Odeio... A frase morreu antes de terminar. Porque, na verdade, ela não sabia se o que sentia era realmente ódio. Não completamente. O que Rafael despertava nela era um emaranhado de emoções que ela não sabia nomear. Uma mistura de irritação com... curiosidade. Raiva com... admiração. E, em certos momentos, um calor no estômago que ela fingia não notar. — Não. Eu odeio ele — repetiu, como um mantra, tentando convencer a si mesma mais do que ao mundo. — Odeio até aquele cabelo ridiculamente bem penteado. Ajeitou os fios soltos atrás da orelha e fitou o próprio reflexo no espelho do armário. Olheiras. Testa franzida. Lábios contraídos. Parecia exausta, e não era só pela carga de trabalho. *Era ele. Sempre ele.* Do outro lado do hospital, Rafael estava parado diante da janela de sua sala, observando o movimento frenético lá fora. Enfermeiros entrando, médicos trocando plantões, pacientes sendo levados em cadeiras de rodas. Tudo acontecia com a precisão de um relógio suíço. Como ele gostava. Exceto por uma variável que ultimamente tinha bagunçado a engrenagem de seu dia a dia: Helena Ferreira. Ele passou a mão pelo queixo, pensativo. Nos últimos meses, ela havia sido o único elemento de sua rotina que não conseguia prever — nem controlar. E isso o deixava inquieto. — Enfermeira Ferreira... — disse em voz baixa, como se saboreasse o nome. — Vulcânica, desbocada, teimosa... perigosa. Ele lembrava perfeitamente da discussão da noite anterior. As palavras afiadas, o tom de voz dela cortando o ar como bisturi. Helena não aceitava suas ordens sem questionar. Ela argumentava, enfrentava, e quando sentia que estava certa, o desafiava com aquele olhar que misturava fúria e fogo. E aquilo... aquilo era o que o deixava mais desconcertado. — Por que ela me tira do eixo desse jeito? — perguntou-se, voltando à mesa e folheando prontuários como desculpa para ocupar as mãos. Mas as imagens voltavam. A maneira como ela franzia a testa quando se concentrava. Como mordia o lábio inferior quando estava tentando se conter. Como a voz ficava mais baixa quando ela falava sobre os pacientes mais frágeis. Ela tinha algo que ele não conseguia definir. Talvez fosse a coragem de ser autêntica, mesmo dentro de um sistema que exigia máscaras e etiquetas. Talvez fosse a intensidade com que ela vivia cada plantão, cada paciente, como se aquilo realmente importasse. Ou talvez fosse o fato de que, apesar de tudo, ela não parecia se importar nem um pouco com quem ele era. — Ela não me idolatra... — murmurou, e percebeu o quanto isso era raro. A maioria dos colegas — e até de chefes — o tratava com reverência. Mas Helena o tratava como um igual. Ou melhor, como um rival. *E isso era perigosamente atraente.* No corredor principal, Helena atravessava apressada em direção ao bloco cirúrgico. Sabia que encontraria Rafael em instantes — a primeira cirurgia do dia era uma laparotomia de emergência, e ele já devia estar pronto. Ela tentou preparar o espírito. Respirou fundo, ajeitou o crachá e manteve o olhar firme. Mas a verdade é que só de pensar nele, seu peito apertava de um jeito esquisito. Como se odiasse e desejasse, tudo ao mesmo tempo. Entrou na sala de cirurgia e encontrou Rafael já paramentado, de costas, conferindo os instrumentos. O jaleco impecável. O cabelo no lugar. As luvas calçadas com precisão quase coreografada. — Bom dia — disse ela, seca. Ele se virou, e os olhos se encontraram por um segundo. Um segundo longo demais. — Enfermeira Ferreira — respondeu ele, com o que parecia ser um sutil... sorriso? Helena não gostava daquele sorriso. Ele tinha um ar de desafio, como se dissesse *"eu sei o que estou fazendo com você"*. E talvez soubesse. — Tudo pronto? — ela perguntou, tentando soar indiferente. — Sempre está — respondeu ele, e aquela resposta a irritou. Como se ele estivesse dizendo que só o toque dele bastava para o mundo funcionar. Helena quis retrucar. Mas conteve-se. Estavam diante da equipe. Diante do paciente. — Vamos salvar uma vida hoje — ela disse, em voz baixa, mais para si do que para ele. — Sempre é esse o objetivo — respondeu Rafael, ainda olhando para ela. E naquele instante, antes da cirurgia começar, antes da tensão explodir no centro cirúrgico, havia algo no ar. Um silêncio carregado. Um campo elétrico prestes a gerar faíscas. Ambos sabiam que estavam andando numa corda bamba entre repulsa e desejo. E ninguém sabia quem cairia primeiro. Mas uma coisa era certa. Eles já estavam perigosamente próximos do abismo.O silêncio da sala de descanso foi quebrado por um alarme estridente que ecoou pelos corredores como um grito de alerta. Helena levantou o olhar do prontuário que revisava, sentindo o frio familiar escorrer por sua espinha. O som do código vermelho era inconfundível: trauma grave, paciente em estado crítico chegando à emergência.Ela saltou da cadeira, já puxando a touca do bolso do jaleco e prendendo o cabelo com agilidade. Seus passos ecoavam acelerados pelos corredores do hospital enquanto enfermeiros corriam em direções opostas e o rádio no peito de um residente anunciava:— Acidente na rodovia central! Motociclista em politraumatismo, instável! Está a caminho da cirurgia. Tempo estimado: dois minutos.No centro cirúrgico, Rafael Moretti já estava em pé, como se tivesse previsto a chegada. O olhar cortante, a postura ereta, o bisturi já em mãos mesmo antes de vestir a paramentação completa. Quando o residente entrou e deu o relatório, ele nem piscou.— Quero a sala dois pronta em
O silêncio do corredor contrastava com a agitação que ainda pulsava dentro de Helena. Suas mãos tremiam levemente enquanto retirava a touca, o elástico enroscando-se no cabelo desgrenhado. O corpo pedia descanso, mas a mente ainda estava presa à sala cirúrgica — ao sangue, ao som ritmado dos monitores, ao olhar intenso de Rafael que a acompanhara o tempo todo como se ela fosse seu porto seguro no meio da tormenta.Ela encostou-se à parede fria do corredor, respirando fundo. Por mais que já tivesse enfrentado outras emergências, aquela... aquela fora diferente.— Tá tudo bem? — A voz grave, baixa, fez com que ela abrisse os olhos rapidamente.Rafael estava parado a poucos passos, ainda em avental cirúrgico, com a máscara pendurada no pescoço e o semblante mais... humano do que ela jamais vira. Sem a couraça da frieza habitual, ele parecia exausto. E mais bonito do que ela gostaria de admitir.— Sim — respondeu, ajeitando os cabelos soltos com os dedos. — Só recuperando o fôlego. E você
Helena passava os dedos pela alça da mochila quando avistou a silhueta parada junto ao portão lateral do hospital. Rafael. Ele estava ali, parado no escuro, como uma sombra fora de lugar. O jaleco jogado sobre o braço, o celular na outra mão, mas sem olhar a tela. Apenas... esperando. Ela considerou fingir que não o viu. Estava exausta. Não tinha mais energia para suas ironias ou sua frieza calculada. Mas também não era do tipo que recuava. — Me seguindo agora, doutor? Rafael virou o rosto, a expressão tão difícil de ler quanto sempre. — Te procurei para entregar isso — disse, erguendo algo em direção a ela. Um crachá. O dela. Helena passou a mão automaticamente no peito e percebeu que de fato não estava lá. — Ah. Obrigada. Ela esticou a mão para pegar, mas ele não soltou de imediato. Os dedos dele encostaram nos dela por um breve instante, e foi o suficiente para que um arrepio lhe percorresse os braços. Helena puxou o crachá sem comentar. Enfiou no bolso da mochila.
O hospital tinha um jeito estranho de silenciar gritos. Às vezes, os mais altos vinham de dentro.Ele não quis contar. Não quis colocar para fora. Naquela manhã, o corredor principal da ala cirúrgica estava cheio de passos apressados, vozes apressadas, e a urgência constante que pulsava como um coração gigante. Mas Rafael Moretti caminhava por ele como um espectro. O jaleco impecável, os cabelos perfeitamente alinhados, os olhos escondendo tudo o que o resto do corpo não conseguia disfarçar.Ele cruzou a ala sem dizer bom dia. Não que fosse seu costume ser caloroso, mas naquela manhã, até o silêncio dele parecia mais frio. Mais duro.— Ele está pior — comentou uma das residentes, em voz baixa, enquanto organizava os prontuários. — Parecendo... instável.— Dormiu aqui de novo, aposto — disse outra. — Esse caso de ontem mexeu com ele.Helena ouviu os sussurros ao fundo, mas não deu atenção. Seus olhos seguiram Rafael até ele desaparecer na antessala do centro cirúrgico. Algo em seu and
A noite caiu sobre o hospital como um cobertor pesado e abafado. Lá dentro, as luzes frias continuavam acesas, indiferentes ao que o tempo lá fora insistia em esconder. Rafael Moretti observava a cidade pela janela do oitavo andar. As ruas refletiam o brilho dos faróis como veias pulsando em meio à escuridão. Tinha encerrado a última cirurgia do dia sem uma palavra, e desde então, permanecia ali, imóvel, com o jaleco pendurado na cadeira e as mãos nos bolsos da calça. Ele havia voltado a fechar o rosto. — Achei que fosse ficar pra jantar com a equipe — disse Helena, surgindo à porta, com uma bandeja de comida embrulhada em isopor. — Até te trouxe isso. — Ela levantou o pacote. — Arroz, frango, saladinha que você provavelmente vai ignorar... Ele não se moveu. — Não estou com fome — respondeu, sem sequer olhar. Ela pousou a bandeja sobre a mesa de centro e cruzou os braços. — Você vai mesmo fingir que aquele momento de hoje cedo não aconteceu? — A cirurgia foi bem-sucedid
Ela chegou em casa e jogou a bolsa no sofá com força. O apartamento escuro parecia menor do que nunca. O silêncio gritou em seus ouvidos.Helena passou as mãos nos cabelos, andou de um lado para o outro e tentou — em vão — racionalizar o que sentia. Mas era impossível.Ver Rafael assim foi como sentir o próprio peito aberto. Porque ela sabia, mais do que qualquer um, o que havia por trás daquele comportamento. Era fuga. Autopunição. Uma forma de enterrar a dor antes que ela o engolisse por completo.Mas ela não era babá. Nem terapeuta.E, naquele momento, não sabia se estava mais decepcionada com ele... ou consigo mesma por ter acreditado que ele podia ser diferente.A única certeza era que, depois daquela noite, algo dentro dela também havia mudado.E talvez não tivesse mais volta.O dia seguinte amanheceu cinzento e abafado, como se o próprio céu soubesse que algo não estava certo. O hospital seguia seu ritmo habitual
A porta da sala de descanso ainda estava se fechando quando Rafael sentiu o silêncio se tornar ensurdecedor.A frase final de Helena ecoava em sua mente como um bisturi mal direcionado: “Estou tentando esquecer que também te admirava como homem.”Ele ficou parado por longos minutos, olhando para o vazio, com os punhos cerrados e a mandíbula rígida. Queria dizer que ela estava errada. Queria convencer a si mesmo de que não precisava daquilo — dela. Mas a verdade era que, pela primeira vez em anos, alguém o tinha visto. E agora o olhava com decepção.E Rafael odiava decepcionar. Odiava mais ainda sentir.Jogou-se na cadeira como se os joelhos finalmente cedessem. Passou as mãos pelo rosto, tentando apagar o gosto metálico da raiva e o amargor do arrependimento. Ainda podia sentir o cheiro do perfume barato da mulher da noite anterior em sua roupa, mesmo depois de trocar o jaleco. Uma lembrança sórdida de sua fraqueza.Ele não tinha planejad
Helena atravessou os corredores do hospital com os ombros tensos e o coração apertado. Tentava focar na rotina, nos pacientes, nas tarefas. Tentava fingir que o dia anterior — e tudo que veio antes dele — não havia deixado um rastro dentro dela. Mas era impossível ignorar a cena que ainda queimava sob suas pálpebras: Rafael, saindo do bar, cambaleante, com uma mulher pendurada no braço.Ela não se sentia traída. Eles não tinham nada — nenhuma promessa, nenhum compromisso. Mas, ainda assim, ver aquilo a atingiu com força. Não por ciúmes. Era decepção. Decepcionada por ter acreditado que havia algo mais sob a frieza dele. Algo que ela podia alcançar.Eu fui ingênua, pensou, enquanto anotava o prontuário de um paciente recém-operado. Suas mãos tremiam levemente, mas o rosto permanecia impassível. Ela tinha prática nisso. Ser forte. Ser racional. Ser quem aguenta tudo.Ao cruzar com Rafael no corredor pela manhã, o ar pareceu sumir por um instante. Ele desviou