Capítulo 1
Eu costumava ter uma teoria: quando a gente ama a pessoa errada por tempo demais, o amor certo passa a parecer um mito. Como unicórnios ou fim de fila em banco. A gente jura que existe, mas nunca viu de verdade. Depois de André, esse mito virou um fantasma que eu não sabia se queria ver de novo ou se preferia manter guardado, onde não pudesse me machucar. André foi o tipo de erro que a gente demora a aceitar. Aquele que vem embalado com charme, promessas doces e o tipo de atenção que faz a gente se sentir vista. Mas, com o tempo, tudo foi se tornando sobre ele. O que ele queria, o que ele sentia, o que ele decidia. E eu fui me apagando, como uma pintura antiga esquecida numa parede, perdendo cor aos poucos, sem que ninguém percebesse. Tempo demais em algo que eu tentei manter como uma criança apegada a um brinquedo. A diferença? O brinquedo era eu que foi descartado na primeira oportunidade de algo melhor e mais interessante. Isso só me mostrou que as vezes não temos tanto valor quanto pensávamos. Era uma tarde quente quando eu deixei Belo Horizonte pra trás. O carro estava abarrotado com minhas coisas mais essenciais: roupas confortáveis, minhas ferramentas de restauração, uma cafeteira velha que me seguia desde os tempos da faculdade e minha necessidade urgente de desaparecer. Me despedi da cidade como quem fecha um capítulo com mais alívio do que saudade. A proposta para restaurar um casarão histórico em um distrito de Ouro Preto caiu no meu colo, numa daquelas coincidências que a gente nem tenta entender. Uma arquiteta conhecida indicou meu nome para o projeto, e eu aceitei antes mesmo de terminar de ler os detalhes. Não me importava onde era, o que era, quanto ia receber. Eu só queria sair. Precisava respirar outro ar, me encontrar fora do reflexo dele. O vilarejo era pequeno, daqueles que têm uma pracinha com igreja no centro e casas coloniais em volta. Ruas de paralelepípedos contavam histórias em cada buraco, e as sacadas enfeitadas com vasos de flores pareciam resistir bravamente ao tempo. Cheguei no fim da tarde, com o sol pintando o céu de dourado, e uma sensação estranha de que eu estava indo longe demais pra não ter ido a lugar nenhum. O casarão era mais imponente do que nas fotos. Estruturalmente estava de pé, mas o tempo havia deixado suas marcas: tinta descascada, janelas empenadas, detalhes em madeira cobertos de sujeira e abandono. Era bonito. Triste, mas bonito. Tinha uma dignidade silenciosa, como quem já foi muito amado e agora esperava pacientemente para ser lembrado. E foi ali, com uma mala numa mão e uma prancheta na outra, que eu conheci Miguel. — Você que é a restauradora? — ele perguntou, saindo de uma das laterais do casarão. Não sei o que eu esperava. Talvez um senhor grisalho, ou um jovem entusiasmado com estilo hipster. Mas Miguel era... diferente. Tinha cabelos castanhos, bagunçados pelo vento, e olhos tão escuros que pareciam carregar um cansaço antigo. Era alto, com postura de quem está sempre atento, mas cansado de precisar estar. Vestia uma camiseta preta simples e jeans desbotados. E falava com a mesma emoção de um manual de instrução. — Sou, sim. Helena. — estendi a mão, tentando quebrar o gelo. Ele apertou minha mão rapidamente, como se cumprir o protocolo fosse o suficiente. Sem sorriso. Sem boas-vindas. Apenas um aceno com a cabeça e uma frase: — Vou te mostrar onde você vai ficar. A casa onde eu ia dormir ficava nos fundos do casarão, uma antiga casa de serviço adaptada para hospedar funcionários. Era pequena, mas limpa e organizada. Miguel explicou que quase ninguém do projeto se hospedava ali, a maioria era da região e ia embora no fim do dia. "Menos barulho, menos conversa", ele disse, sem perceber que isso me descrevia melhor do que ele imaginava. Passei a primeira noite em silêncio. Sem som de trânsito, sem barulho de vizinhos, sem André dizendo que não tinha culpa se o trabalho o consumia. Dormi ouvindo grilos e o estalo das árvores batendo nas janelas. Pela primeira vez em muito tempo, o silêncio parecia acolhedor, como um cobertor antigo que ainda conserva o cheiro de casa. Na manhã seguinte, comecei o reconhecimento das peças do casarão. Tinta lascada, infiltrações, danos em madeiras entalhadas — uma verdadeira poesia para mim. Encontrei marcas de restaurações antigas, mal feitas, que mais escondiam do que preservavam. Fiz anotações meticulosas, perdi a hora do almoço e só fui dar por mim quando ouvi uma voz atrás de mim. — Você vai desmaiar se continuar nesse ritmo. Virei rápido. Miguel estava na porta, com um copo de suco de laranja e um sanduíche embrulhado em papel toalha. — Achei que você não se importasse com isso. — eu disse. Ele deu de ombros. — Eu não me importo com conversa fiada. Mas também não quero uma restauradora desmaiada no meu projeto. Aceitei o lanche em silêncio. Sentamos num banco de madeira perto da varanda dos fundos. Comemos sem pressa, em um silêncio que não era desconfortável, mas também não era exatamente acolhedor. — Você gosta do que faz? — perguntei, por fim. Ele demorou um pouco para responder, como se pesasse cada palavra. — Gosto do que posso controlar. Projetos, prazos, plantas. Tudo tem uma ordem. Tudo tem uma razão. — E pessoas? — Pessoas são bagunçadas. Sorri, pela primeira vez sincera desde que cheguei. — Concordo. Miguel me olhou como se não esperasse isso. Como se, no fundo, estivesse acostumado com gente tentando se aproximar dele, insistindo em puxar conversa, cutucar, forçar uma aproximação que ele não queria. Mas eu não queria isso dele. Não naquele momento. Eu só queria ficar inteira. O resto do dia passou entre medições, croquis e silências. Quando anoiteceu, voltei pra casa com uma sensação estranha: eu ainda não conhecia Miguel, mas, de alguma forma, ele não parecia um desconhecido. Talvez porque havia tristeza nele. E eu reconhecia esse lugar. Havia algo em seus olhos que me lembrava o espelho nos meus piores dias. Um tipo de solidão que não se desfaz com companhia, porque nasce dentro da gente. A diferença era que eu estava tentando sair dele. E Miguel... bem, Miguel parecia ter feito dele sua casa. E naquela primeira noite em que a lua cheia iluminava o casarão e os morcegos riscavam o céu como sombras apressadas, eu tive a sensação de que talvez, só talvez, aquele projeto fosse mais do que uma tentativa de fuga. Talvez fosse o início de algo novo. Mesmo que eu ainda não soubesse o quê. Talvez fosse só uma ilusão de ver algo com bons olhos, ou somente uma esperança de que tudo ficaria bem. A verdade é que ali eu queria que tudo mudasse, que eu conseguisse um caminho novo, mesmo que para o desconhecido.