Laís
Depois da entrevista na rádio e do spray mal lavado do muro, a ONG virou uma máquina de provar que respira direito. Cada gaveta ganhou etiquetas, cada planilha virou espelho. A palavra “denúncia” deixou de ser uma sombra e passou a ser uma pauta recorrente: toda manhã, às oito em ponto, Nanda passava checklist, definia entregas, lembrava prazos. “Transparência não é discurso, é método”, ela repetia, e eu sublinhava no meu caderno como quem grava no corpo.
Eu me sentia dividida em duas: a Laís que ama gente, árvores e conversas demoradas com crianças curiosas; e a Laís que decora códigos, prazos, rubricas. O caderno onde eu antes escrevia pequenos poemas virou lista de tarefas. Às vezes eu o abria na página antiga e lia uma frase perdida — “há silêncios que são reza” — só para lembrar por que eu estava ali. Depois respirava fundo e voltava pros números.
Gabriela virou minha guardiã de copo d’água. Toda hora surgia na porta com uma garrafinha e um olhar que dizia “bebe”. Rafael