Na terça-feira, o contrato entre nós já parecia mais real do que qualquer prova escrita. Bastaram dois dias para que tudo mudasse — inclusive os olhares no corredor.
Agora, quando eu passava, os olhares demoravam. As conversas silenciavam. Laura revirava os olhos como se eu tivesse traído algum código de status. E Victor… parecia gostar da confusão que causávamos juntos.
No almoço, ele veio me buscar. Como se fosse automático. Como se fosse — real.
— Você gosta de pizza? — perguntou.
— Desde que não tenha abacaxi.
— Ótimo. Sabia que tinha bom gosto.
Entramos num restaurante com decoração elegante, uma luz baixa que fazia tudo parecer mais íntimo do que deveria. Sentamos próximos demais. A mesa parecia pequena demais. Talvez fosse proposital.
— Preciso te perguntar uma coisa — disse ele, enquanto mexia no refrigerante.
— Pergunta.
— Você sempre foi tão… afiada?
Franzi a testa, fingindo não entender.
— Inteligente. Sarcástica. Direta. Me confunde.
— Talvez você esteja acostumado a elogios vazios.
— Talvez esteja desacostumado com gente que não me bajula.
Nos encarávamos com aquele silêncio carregado de algo que não cabia no contrato. A tensão leve, a expectativa nas entrelinhas. Uma eletricidade quieta que só quem já sentiu sabe nomear.
Victor se inclinou um pouco.
— Posso te contar uma coisa? Mas só se prometer que vai guardar — disse, sério.
Assenti. Ele tirou o celular do bolso e me mostrou uma foto.
Era de uma menina, cerca de seis anos, sorrindo no colo de uma mulher de expressão triste. A mulher usava uniforme. De hospital.
— Minha mãe morreu há três anos. Essa da foto é minha irmã. Ela mora com meus avós no interior.
— E por que você me mostrou isso?
— Porque você parece… real demais. E eu precisava que alguém visse que, por trás do meu sobrenome, existe uma parte quebrada.
Por um momento, esqueci da encenação. Esqueci do contrato. Segurei o celular dele com calma e devolvi com delicadeza.
— Todo mundo tem pedaços quebrados. Só nem todo mundo tem coragem de mostrar.
Ele sorriu. Mas não foi aquele sorriso ensaiado. Foi quase tímido. Quase vulnerável.
A comida chegou. Comemos pouco. Falamos menos. Mas os olhares diziam muito. Havia uma camada sendo removida. Lentamente. E algo mais começando.
Na volta, ele insistiu em me deixar em casa. Quando chegamos, estacionou o carro e desligou o motor, mas ficou ali, sem pressa.
— Você mora aqui? — perguntou, olhando a fachada simples do prédio.
— Sim. E antes que pergunte: não, não tem porteiro, nem elevador com tapete dourado.
Ele riu.
— Gosto mais assim. As coisas são honestas.
Nos encaramos. A noite já começava a cair. Os faróis de carros cruzavam a rua como fantasmas apressados. E aí, sem roteiro, sem aviso, ele se aproximou.
— Posso te dar um beijo?
A pergunta me surpreendeu mais do que se ele tivesse feito. Porque não era parte do acordo. Não estava no contrato. Era outra coisa. Um desejo que escapava das cláusulas.
Olhei para ele. O rosto perto. Os olhos sinceros. O coração disparado, sim, mas não só o meu.
— Não sei se deveríamos… — respondi, em voz baixa.
— Então não vou forçar. Mas... eu queria. Só isso.
O silêncio se estendeu como um segundo que dura mais que o normal. Depois, sorri.
— Talvez semana que vem — provoquei.
Ele riu. Um riso cheio de alívio, desejo e mistério.
Antes de sair do carro, ele segurou minha mão. Só por um instante. Só o tempo suficiente para que eu sentisse algo que não devia sentir.
—
Mais tarde, deitada na minha cama, com o som da TV da vizinha invadindo a parede, eu só conseguia pensar naquele toque. Na vulnerabilidade dele. No que estava por trás do seu controle.
O contrato tinha iniciado. Mas alguma coisa fora dele também.
E eu, sem querer, estava começando a desejar que tudo fosse verdade.