A notificação do banco chegou por e-mail, mas poderia muito bem ter sido um soco.
Assunto: Congelamento temporário de conta.
Motivo: investigação de movimentações judiciais vinculadas à ação civil Ventura & Associados.
Saldo disponível: R$ 0,00
Isadora encarou a tela por um longo minuto, com a mão ainda pairando sobre o mouse. O vinho da noite anterior ainda repousava sobre a mesa, agora esquecido ao lado de uma xícara de café frio. A luz da manhã não suavizava as sombras ao seu redor, nem dentro dela.
Respirou fundo.
Levantou-se.
Foi até o cofre.
Dentro, pequenas relíquias de família. Joias da avó. Um colar que seu pai mandou fazer quando ela se formou. Um anel de diamante que seria usado no dia do casamento com Marcelo, e nunca chegou a sair da caixa.
Agora, talvez virassem moeda de troca.
— Então é isso... — murmurou para si mesma, sentindo o gosto da humilhação — Nem meu nome vale mais do que o peso de um ouro velho.
Fechou o cofre. Mas não o trancou.
Deixou-o aberto.
Como se aceitasse que parte de sua alma também estava ali, exposta para leilão.
Mais tarde, ainda na empresa, ela evitava todos os olhares. Alguns funcionários que restavam já sabiam da situação, cochichavam, desviavam os olhos, outros fingiam normalidade. Mas o que mais doía era ver o olhar de pena. Ela preferia o desprezo.
Marina entrou às pressas, com uma caixa branca nos braços.
— Mandaram entregar agora. Não tem remetente.
Isadora arqueou a sobrancelha.
— Alguma pista?
— Só isso aqui. — Ela estendeu um cartão.
Isadora leu, e as palavras queimaram na pele:
— “Porque toda rainha precisa saber o preço da sua coroa. – L”
Ela não precisou de explicações.
Abriu a caixa.
Dentro, um quadro negro. Emoldurado com madeira nobre. Atrás do vidro, um cheque, simbólico, claro, com um valor irônico escrito em negrito: R$ 1.000.000,00
Assinado por ele.
Lorenzo Salvatori.
E abaixo da assinatura, uma frase:
— “Aceite ou continue sangrando.”
O escritório parecia ter ficado menor, sufocado. O cheiro de madeira e papel se transformou em algo metálico. Um gosto amargo subiu à garganta.
— Ele acha que isso vai me dobrar? — disse, apertando o cartão com tanta força que os dedos ficaram brancos.
— Vai responder?
— Vou ignorar!
— Tem certeza?
Isadora a olhou nos olhos.
— Se eu responder, ele ganha. E Salvatori nunca j**a uma carta sem saber o efeito.
Marina apenas assentiu, mas o medo era palpável em sua expressão.
Ao final do dia, Isadora entrou em seu apartamento com a dignidade ainda presa à sola do salto.
Deixou a bolsa sobre a mesa, tirou os brincos e abriu o computador.
Nada de respostas dos contatos que havia feito. Nenhum e-mail, nenhuma ligação. Apenas mais notificações de cancelamentos, mais incertezas, mais ausência.
O apartamento parecia ecoar vazio, embora estivesse mobiliado. Era o silêncio do fracasso. O som de uma mulher sendo arrancada de dentro da própria história.
E então ela viu. Em cima da bancada da cozinha.
O quadro.
Ele havia mandado outro.
Mesmo sem atendê-lo, ele fez questão de enviar uma segunda versão, agora, deixada diretamente em sua casa.
Não bastava humilhar em público. Lorenzo sabia que o verdadeiro cerco acontece no particular. Quando você está só, sem testemunhas, sem defesas.
Isadora pegou o quadro com raiva e atirou contra a parede.
O vidro se estilhaçou. A moldura rachou.
Mas o cheque ainda estava lá. Intacto.
Como uma lembrança silenciosa: ele está sempre um passo à frente.
Naquela noite, ela dormiu pouco.
Seus pensamentos se dividiam entre o medo real de perder tudo… e a raiva por estar sendo empurrada para os braços do único homem que jamais aceitaria como salvador.
Lorenzo Salvatori não queria ajudar. Ele queria possuir. Dominar. Escravizar sua vontade com contratos e jogos de controle emocional.
E ela… não ia se render.
Ainda não.
O relógio marcava dez e meia da manhã quando Isadora entrou na joalheria com o que restava de sua dignidade pendendo nos ombros. O terno cinza claro a fazia parecer ainda mais pálida sob a luz branca das vitrines. Nos dedos, as alianças quebradas de um passado que ela queria enterrar. Na bolsa, as relíquias que jamais imaginou precisar vender.
A vendedora sorriu com profissionalismo. Mas bastou um segundo para reconhecer quem ela era.
— Senhora Mancini... é uma honra.
— “Não vai ser por muito tempo.” — pensou Isadora, com um sorriso curto.
— Estou aqui para vender algumas peças. — disse, colocando a caixinha de veludo sobre o balcão.
A mulher abriu com cuidado, revelando o colar de pérolas negras, o bracelete cravejado de diamantes e o anel de safira envolto em prata italiana.
— São peças… importantes.
A vendedora assentiu, mas os olhos dela traíram o protocolo. Havia ali não apenas reconhecimento, havia pena.
— Claro… só um instante. Vou chamar o avaliador.
Minutos depois, o gerente apareceu.
O homem examinou cada peça como se estivesse avaliando um legado esquecido. Murmurou termos técnicos, testou pureza, calculou pesos. Por fim, ergueu os olhos e disse:
— Podemos pagar noventa mil. No total.
Isadora franziu a testa.
— Essas peças valem o triplo disso cada uma.
— Sim, senhora. Mas estão em baixa demanda… e, com todo respeito, sua assinatura está em uma fase delicada no mercado.
A frase foi dita com cuidado. Mas não suavizou o golpe.
O que ele queria dizer era simples: até suas joias haviam perdido valor por causa dela.
Ela recolheu a caixa sem dizer mais uma palavra.
Virou-se.
Saiu sob os olhares dos poucos clientes que sussurravam seu nome como quem assiste a queda de uma lenda.
Ao chegar em casa, o envelope esperava por ela na portaria.
Dessa vez, não vinha de Lorenzo. Nem de Marcelo.
Mas do proprietário do imóvel.
— “Notificação de despejo – prazo máximo de 10 dias para regularização.”
Isadora subiu os degraus sem pegar o elevador. Não queria ver ninguém. Não queria ser vista.
Cada passo era uma confissão silenciosa: o mundo estava desabando.
E ela não tinha mais onde se esconder.
No final da tarde, ela abriu uma garrafa de vinho e se sentou na sacada. A cidade parecia zombar dela com seus prédios iluminados, buzinas impacientes e carros de luxo passando por avenidas onde, até poucos meses atrás, ela mesma desfilava com altivez.
O interfone tocou.
Ela ignorou.
Tocou de novo.
Atendeu.
— Senhora Mancini? Um homem está aqui. Disse que é importante.
Ela suspirou fundo.
Sabia quem era.
E sabia que estava pronta para mandá-lo embora com cada palavra envenenada que ensaiou nos últimos dias.
— Mande subir.
A campainha tocou com suavidade.
Isadora abriu a porta já com a postura erguida. Não permitiria que ele a visse menor. Mesmo que ela se sentisse um grão de poeira diante da avalanche que era Lorenzo Salvatori.
Ele entrou com passos firmes. Um terno preto impecável, gravata escura e um olhar que não precisava de palavras para dominar qualquer espaço.
— Não costumo visitar pessoalmente quem me rejeita. Mas você é um caso… fascinante.
— Veio me ver ruir de perto?
— Vim te oferecer uma escolha. Uma última escolha, antes que o mundo tome tudo de você.
Ela cruzou os braços, o queixo erguido.
— Já fez isso com o cheque simbólico, o quadro provocativo, as humilhações públicas. Agora quer o quê? Meu nome gravado numa coleira?
Um canto da boca dele se ergueu num sorriso quase cínico.
— Nada tão literal. Ainda.
Ela cerrou os punhos.
— Pode sair. Não vou aceitar esmolas.
— Não é uma esmola. É um contrato.
Lorenzo tirou do bolso interno um envelope preto. Colocou-o sobre a mesa, sem pressa.
— Três cláusulas principais. Um acordo empresarial. Você mantém o nome da Mancini. Eu assumo os débitos. A marca se mantém viva… sob minha supervisão.
Isadora deu uma risada baixa.
— Supervisão? Quer dizer controle.
— Escolha o termo que quiser. Eu dou a estrutura, você dá a imagem. Casamos nos papéis, fingimos estabilidade, salvamos o que resta da sua reputação… e depois cada um segue com seus termos.
— E quais são… seus termos?
Ele se aproximou. Tão perto que ela pôde sentir o perfume sofisticado e discreto que ele usava, amadeirado, envolvente, perigoso.
— Apenas um: você não se envolve com ninguém durante a vigência do contrato. Não me desafia publicamente. E me acompanha em todos os eventos como minha esposa. Nos holofotes, você será minha.
— E fora deles?
— Fora deles, será livre. Até onde eu permitir.
Ela piscou lentamente. Cada palavra dele era um ataque ao seu orgulho. À sua autonomia. À sua identidade.
Mas o pior era saber que ele estava ganhando.
Porque ela… já não tinha mais opções.
— Vá embora, Salvatori.
Ele não insistiu. Apenas pegou o envelope, co
locou-o de volta no bolso e encarou-a por mais um segundo.
— Tem até sexta-feira. Depois disso… nem sua assinatura vai valer um centavo.
E saiu.
Como um rei que visita ruínas, e já sabe como reconstruí-las ao seu modo.