O silêncio da sede da Mancini Design era um presságio.
As luzes estavam apagadas em metade dos andares. Os corredores, antes vibrantes com ideias e vozes, agora ecoavam como túmulos empresariais. A recepção operava com uma única funcionária. Três departamentos haviam sido demitidos. A sala de reuniões, onde decisões milionárias já foram seladas, agora servia de depósito para caixas com contratos antigos e restos de papelaria. Isadora andava de salto pelos corredores vazios como se ainda reinasse. Mas sabia que o trono estava em chamas. Seu salto ecoava como um desafio, para os que a subestimaram, para o sistema que a engolia, para os próprios fantasmas que a seguiam desde o altar. Ao entrar em sua sala, o baque final chegou. — O oficial de justiça esteve aqui. — anunciou Marina, sua secretária, com olhos baixos — Trouxe a notificação... definitiva. Isadora pegou o envelope sem demonstrar nada. Leu cada palavra com a frieza cirúrgica de quem já está acostumada a amputar ilusões. Prazo: sete dias. Motivo: inadimplência acumulada e quebra de cláusulas de contrato. Destino: leilão judicial. A Mancini Design, aquela que seu avô construiu com as mãos e seu pai lapidou com paixão, seria tomada. Por bancos. Por credores. Por abutres de terno. Por fim, até os móveis teriam etiquetas de preço. Isadora respirou fundo. Não choraria. Não na frente de ninguém. — Obrigada, Marina. Pode sair mais cedo hoje. — Tem certeza? — Tenho. Vá. Assim que a porta se fechou, Isadora se permitiu um momento. Sentou-se em sua cadeira de couro, agora também à beira do confisco, e olhou para a cidade através das janelas imensas. Lá fora, o mundo continuava girando. Executivos selavam contratos. Influencers fechavam publis. A vida não parava para lamentar os fracassos dos outros. Mas o dela… estava virando pó. *** Duas horas depois, ela descia para uma reunião com possíveis investidores. A última tentativa. Sabia que era inútil, mas precisava manter as aparências. Nem que fosse a última vez. E foi aí que aconteceu. No saguão, dezenas de repórteres estavam reunidos. Microfones erguidos. Luzes ligadas. Câmeras apontadas para ela como armas. — Isadora Mancini, é verdade que a sede da empresa será leiloada? — Lorenzo Salvatori fez uma proposta? — Marcelo Ventura comentou que você está sendo usada por outro Ceo poderoso. O que tem a dizer? O sangue dela congelou. Marcelo. Aquele desgraçado ainda tinha espaço na mídia. E agora comentava sobre sua ruína como se fosse um entretenimento. Ela tentou passar direto, mas um dos seguranças não abriu caminho. Na confusão, alguém gritou: — A rainha caiu do trono? A frase estalou no ar como um tapa. Isadora parou. Encarou a multidão por um instante. — A rainha talvez caia, mas ela leva a coroa até o fim. — respondeu, antes de continuar seu caminho. Por dentro, estava aos pedaços. Horas depois, trancada em casa, jogou os sapatos longe e deixou o corpo desabar no sofá. Marina havia ligado para cancelar a reunião, os investidores sumiram depois do escândalo da manhã. Ela serviu um copo de vinho e tentou se convencer de que ainda havia uma saída. Mas sabia que estava no limite. Só restava uma pessoa com poder suficiente para salvar tudo. E ela odiava admitir isso. Seu celular vibrou. Mensagem de número não identificado: — “Ainda acha que consegue vencer sozinha? O tempo está acabando, Mancini.” Ela não respondeu. Mas sabia de onde vinha aquela provocação. Lorenzo Salvatori estava assistindo. Esperando. Como um caçador que conhece cada passo da presa antes do ataque final. O relógio da sala marcava quase meia-noite quando a campainha soou. Isadora levantou-se do sofá como uma sombra, ainda com a taça de vinho pela metade nas mãos. O rosto sem maquiagem, os cabelos soltos, um raro momento de vulnerabilidade. Mas nem mesmo isso a impedia de apertar o interfone com frieza. — Quem é? Silêncio por um segundo. E então, a voz grave, perfeitamente modulada: — O porteiro está trazendo um envelope. Apenas assine o recebimento. O coração dela acelerou. Não reconheceu a voz, mas reconheceu o estilo. Formal. Preciso. Indiferente. Como as mensagens que costumavam vir da assessoria jurídica de Salvatori. Ela desceu sem dizer nada. Na portaria, um homem de terno cinza estendia um envelope selado, com brasão dourado no canto superior: “Ventura & Associados – Advocacia Empresarial” Ela não precisou abrir para entender. Aquilo vinha dele. Do homem que a abandonou no altar… e agora queria destruir o que restava da sua dignidade. Ao subir, abriu o envelope com as mãos frias. E leu. — “Notificação Extrajudicial – Ação por descumprimento de cláusula de confidencialidade e uso indevido de estratégias comerciais criadas por Marcelo Ventura durante sua participação na Mancini Design.” Isadora jogou o papel na mesa. Sentiu o estômago revirar. Marcelo estava alegando que ideias aplicadas na empresa, que ele supostamente criou, estavam sendo usadas sem autorização, o que configuraria quebra de contrato. Mas o mais absurdo não era a acusação. Era o valor exigido como “indenização”: o mesmo que restava em sua única conta empresarial ainda ativa. — Ele quer me afundar de vez... — murmurou, num misto de raiva e impotência. No fundo, ela sabia. Marcelo era capaz disso e muito mais. A humilhação pública não tinha sido suficiente. Ele queria arrastá-la até o fundo do poço. E pelo visto... estava conseguindo. *** Na manhã seguinte, o caos se instalou. A notícia do processo vazou. Blogs de negócios replicaram manchetes como: — “Mancini afunda: novo processo pode ser a pá de cal.” — “Ex-noivo entra com ação milionária contra Isadora Mancini.” Ela recebeu mensagens de clientes congelando contratos. Fornecedores exigindo garantias. E investidores sumindo como fantasmas. Na sede da empresa, o telefone não parava de tocar. Marina tentava conter os danos com um sorriso que mal disfarçava o medo. Isadora vestiu um tailleur escuro, prendeu os cabelos e subiu para a sala de reuniões. — Chame os líderes de equipe. Vamos falar de corte. De contenção. De resistência. Mas todos sabiam. Era o último fôlego. Por volta das cinco da tarde, o interfone tocou. Marina atendeu, e em seguida correu até a sala de Isadora com os olhos arregalados. — Ele... está aqui. — Ele quem? — Lorenzo Salvatori. O nome caiu como gelo quebrando na água. — Mande-o entrar. — disse Isadora, sem hesitar. Ela não tinha forças para outra queda, mas também não permitiria que ele a visse quebrada. Não ele. A porta se abriu com suavidade. Lorenzo entrou como se fosse o verdadeiro dono do lugar. Trajava um terno escuro perfeitamente alinhado, óculos escuros, e um olhar que desafiava a própria luz da sala. A presença dele preenchia cada centímetro do ar. Como um veneno doce. Perigoso. Irresistível. — Mancini. — disse, como se fossem velhos conhecidos em um jogo antigo. — Veio assistir de camarote? — Digamos que gosto de observar os movimentos antes de capturar a peça final. Ela se levantou devagar, andando em volta da mesa com passos calculados. — Não sou peça, Salvatori. Sou jogadora. E você sabe disso. Um leve sorriso curvou os lábios dele. Sedutor. Provocador. — Jogadores também perdem. Ela cruzou os braços. — O que quer? Ainda não tenho nada a oferecer. — Ainda não. Mas em breve terá apenas uma escolha. E quando esse momento chegar… quero que se lembre de que eu estive aqui. Vi tudo. Senti tudo. E não julguei. Apenas esperei. Isadora encarou aquele homem como quem encara o próprio destino: silenciosa, desafiadora… e quase vencida. — Vai sair agora? — Ainda não. — Ele olhou para o ambiente — Gosto de ver como a realeza se sustenta nas ruínas. Isso diz muito sobre quem você é. Ela quase riu. Quase. Mas apenas assentiu com frieza. — Então observe bem, Lorenzo. Porque eu não vou me curvar. Nem por você. Nem por ninguém. Ele se aproximou, inclinando-se levemente até o rosto dela. Os olhos verdes cravados nos dela. — Veremos. E então saiu. Sem promessas. Sem acordos. Sem contrato. Apenas a certeza de que o cerco estava cada vez mais fechado. E que o predador estava à espreita... esperando o momento da rendição.