A poeira de mármore pairava no ar da oficina, uma névoa cintilante sob a luz dourada do fim de tarde que entrava pelas janelas altas. Para Helena, aquele pó era sagrado. Tinha o cheiro de seu pai, da sua infância, do trabalho honesto que transformava pedra bruta em alma. Hoje, no entanto, o cheiro parecia o de cinzas. Suas mãos, normalmente firmes e hábeis, tremiam ao segurar o papel que manchava a santidade de sua mesa de trabalho.
Não era a primeira notificação, mas era, inequivocamente, a última.
AVISO FINAL DE EXECUÇÃO.
As palavras eram frias, impessoais, impressas em um preto agressivo que parecia zombar da arte e da vida que a cercavam. A caligrafia de seu pai na placa de madeira pendurada na porta – "Ateliê Santos: Onde a Pedra Ganha Vida" – parecia uma relíquia de um mundo que não existia mais. Um mundo onde as dívidas não eram agiotas com nomes de corporações e onde o trabalho duro era o suficiente.
A dívida não era dela, não originalmente. Fora o erro de seu irmão mais novo, Ricardo, e seu sonho estúpido de expandir o negócio com o dinheiro errado. Um empréstimo rápido, ele dissera. Uma "ponte" até fecharem um contrato grande. A ponte desabou, o contrato evaporou, e o que restou foi um predador financeiro que agora ameaçava tomar tudo. A oficina em Candeias, a casa da família, o último vestígio tangível de seus pais.
Helena amassou o papel, o som do ato um ruído violento no silêncio da oficina. Ela olhou para a escultura inacabada à sua frente: uma figura feminina emergindo da pedra, o rosto contorcido em uma expressão de luta e anseio. Era um autorretrato, ela sabia, embora nunca fosse admitir. A mulher na pedra estava presa, exatamente como ela.
O toque do celular a sobressaltou. O nome "Carla" brilhou na tela. Helena hesitou. Carla era sua amiga de infância, mas a vida a levara para os cantos mais... pragmáticos de Salvador. Ela trabalhava como hostess em eventos de luxo, um pé no mundo que Helena só via em revistas. Um mundo que a repulsava e, naquele momento, a aterrorizava. Ela atendeu.
— Você viu minhas mensagens? — a voz de Carla era rápida, sem rodeios.
— Eu estive ocupada, Carla.
— Ocupada ignorando o fim do mundo? Ricardo me ligou, chorando. Eu sei do aviso final, Lena.
Helena fechou os olhos, a ponte de seu nariz latejando. — Não há nada a fazer.
— Isso não é verdade — a voz de Carla baixou, adquirindo um tom conspiratório. — Existe uma coisa. Uma chance. Mas não é... convencional.
— O que você quer dizer?
— Estou trabalhando em um evento hoje à noite. Em um hotel de luxo na Vitória, em Salvador. Não é um evento qualquer. É... discreto. Privado. — Carla fez uma pausa, escolhendo as palavras com um cuidado que só aumentava a ansiedade de Helena. — É uma espécie de leilão de caridade. A 'elite da elite' vem. Eles doam quantias absurdas para causas nobres.
— E o que eu tenho a ver com isso? Vender minhas esculturas lá? Eles não comprariam minha arte, Carla, não é o estilo deles.
Um suspiro do outro lado da linha. — Eles não leiloam arte, Lena. Pelo menos, não o tipo que você faz.
O silêncio que se seguiu foi pesado. A poeira de mármore pareceu assentar, tornando o ar denso, difícil de respirar. O som distante das ondas quebrando na praia de Candeias, normalmente um consolo, soava agora como uma contagem regressiva.
— Diga de uma vez — a voz de Helena saiu rouca.
— Eles leiloam... experiências. Jantares, viagens. Companhia. Uma das garotas que seria acompanhante em um pacote de fim de semana... desistiu. Aconteceu um imprevisto. Eles precisam de uma substituta. Alguém elegante, bonita, que saiba conversar e que, acima de tudo, precise muito de dinheiro e saiba ficar de boca fechada.
Helena sentiu o estômago revirar. A náusea subiu por sua garganta, amarga como bílis. — Você está me sugerindo... me vender?
— Não seja dramática! Não é isso. Você seria uma acompanhante. Uma presença. Uma bela mulher ao lado de um homem rico por um fim de semana em um resort de luxo. É isso. O lance mínimo para esse pacote é mais do que o suficiente para pagar o agiota três vezes. Você salva tudo, Helena. E ninguém nunca precisa saber. É o preço do silêncio.
— Não — a palavra saiu de seus lábios com uma força que ela não sentia. Era um reflexo, a reação de sua dignidade ferida. — Eu não vou fazer isso. Jamais.
— Ok — disse Carla, surpreendentemente calma. — Então aproveite suas últimas horas na oficina de seu pai. Abrace bem o Ricardo quando os homens do oficial de justiça colocarem as coisas de vocês na rua amanhã. Espero que seu orgulho mantenha vocês aquecidos à noite.
O clique da chamada encerrada foi mais alto que o barulho de um martelo.
Helena ficou paralisada, o telefone ainda pressionado contra a orelha. Orgulho. Era isso que a definia? Ela olhou ao redor. Para o cinzel de seu pai, gasto pelo uso. Para a primeira peça que ela esculpiu, um pequeno pássaro imperfeito que ele guardara como um tesouro. Para a cadeira de balanço no canto, onde sua mãe se sentava e lia para ela.
Aquilo não era orgulho. Era sua alma. E estavam prestes a arrancá-la dela.
A proposta de Carla era um veneno, uma abominação. Mas a alternativa... a alternativa era a aniquilação. Perder aquele lugar não era apenas perder um prédio; era perder o último elo com quem ela era, com sua história. Era deixar seu irmão à mercê de pessoas perigosas.
Uma hora se passou. O sol se pôs, e a oficina foi engolida pelas sombras. A mulher na pedra parecia observá-la, seu rosto de mármore um espelho do tormento de Helena. Com os dedos trêmulos, ela discou o número de Carla.
— Eu sabia que você ligaria — disse Carla, sem um pingo de surpresa.
— Quais são as regras? — a voz de Helena era um sussurro morto.
A viagem de Candeias para Salvador pareceu um borrão. Carla a guiou por telefone, dando instruções precisas. Um vestido preto, simples, que Carla havia deixado para ela com um motoboy. Sapatos de salto. Cabelo solto. Maquiagem mínima. — Você não precisa parecer uma profissional — Carla dissera. — Precisa parecer real. É isso que eles querem comprar. Um vislumbre de algo autêntico.
A ironia quase a fez rir.
Ela se viu na entrada do hotel mais luxuoso de Salvador, um arranha-céu de vidro e aço que perfurava o céu noturno como uma agulha de diamante. O ar condicionado do lobby era um choque contra sua pele quente e úmida do calor da Bahia. Mármore polido, lustres de cristal, pessoas deslizando pelo ambiente com uma elegância que parecia inata. Ela se sentiu como uma fraude, uma escultura mal-acabada em uma galeria de obras-primas.
Carla a encontrou perto dos elevadores, impecável em seu uniforme de hostess. Ela entregou a Helena um cartão magnético.
— Suíte presidencial. Andar 32. O evento é lá. Não fale com ninguém até eu chegar. Respire fundo, Lena. Lembre-se do porquê está aqui.
O elevador subia em um silêncio veloz e pressurizado. A cada andar, Helena sentia uma parte de si mesma sendo deixada para trás. A escultora. A filha. A mulher orgulhosa. Quando as portas se abriram no andar 32, o corredor era silencioso, forrado com um tapete tão grosso que seus passos não faziam barulho.
Ela parou diante da porta dupla de madeira escura da suíte presidencial. O som abafado de conversas e música clássica vazava por baixo dela. Era a porta de entrada para um inferno particular, um que ela estava escolhendo entrar. Pela sua família. Pelo seu passado.
Ela ergueu a mão, o coração batendo descompassado contra as costelas. Era um ponto sem retorno. O momento em que a pedra de sua vida seria irrevogavelmente partida. Com um último suspiro trêmulo, um adeus silencioso à mulher que ela fora até aquela manhã, Helena empurrou a porta.