Acordei com o som do meu despertador e o peso costumeiro sobre meu peito. Não era a ansiedade, nem o peso da responsabilidade de ser uma jornalista que mal tinha tempo pra lavar as próprias roupas: era Bento, o gato.
— Você dorme aqui por prazer ou por vingança? — murmurei, tentando mover o braço e espantar aquele corpinho peludo e satisfeito que ronronava feito motor de lancha. Ele abriu um olho e bocejou. Sem pressa. Sem culpa. Com a tranquilidade arrogante que só os gatos são capazes de exibir. — Claro. Ignora. Você é bom nisso — reclamei, me arrastando pra fora da cama enquanto ele se espreguiçava como se tivesse acabado de fazer um favor pra mim. Fui até a cozinha, coloquei ração no potinho dele e preparei meu café. A TV estava ligada no volume baixo, e uma apresentadora falava sobre as últimas fofocas do mundo dos famosos. Não dei muita atenção. Até ouvir um nome que me fez derramar café na bancada. — Pedro Dantas foi visto ontem deixando um restaurante no centro da cidade, aparentemente sozinho. Fontes próximas ao ator dizem que ele está mais reservado nos últimos dias, mas o motivo ainda é um mistério... — Hum... reservado nada — murmurei, bebendo o café ainda quente. — Está aí armando alguma coisa e eu que não vou ser pega de surpresa. Bento miou, como se estivesse concordando ou, mais provavelmente, reclamando que a água dele não estava tão fresca assim. — Tá, eu já troco, vossa majestade — resmunguei, indo até o filtro. — Sabe, você devia me agradecer. Eu trabalho o dia inteiro pra manter essa sua vida de luxo. Ele me encarou como se dissesse foi você quem me adotou, querida. Depois de alimentar o príncipe felino, tomei um banho rápido e comecei a me arrumar para ir até a redação. Hoje era um daqueles dias em que não havia nenhuma pauta urgente, então eu podia trabalhar em algo mais leve. Talvez uma coluna de opinião. Talvez... um ensaio sobre como celebridades usam a mídia pra se recontar. Um nome já tinha se formado na minha mente antes mesmo que eu percebesse: Pedro Dantas. — Não. Nem começa com isso — falei em voz alta, olhando para o espelho. — Não vou me transformar na jornalista que perde o senso só porque o bonitão do cinema me ligou. Passei um batom claro, peguei a bolsa, e antes de sair, me virei para Bento. — E se o assessor dele ligar hoje? Acha que eu devo fingir que estou ocupada? Ou responder com aquela voz blasé de quem já entrevistou gente mais importante? Ele pulou para o encosto do sofá, deitou-se ali e me encarou com o rabo oscilando de leve. — Você tá me julgando, né? Ele fechou os olhos. Tranquei a porta com um suspiro e segui para o elevador, já sentindo a estranha tensão no ar que me acompanhava desde aquela ligação. No caminho até a redação, pensei em tudo o que podia estar por vir. Um convite para uma segunda entrevista? Um evento? Um pedido de consultoria sobre como “parecer mais honesto” em público? Eu já tinha lidado com gente famosa antes. Mas Pedro Dantas parecia ser de um tipo diferente. Não só porque ele era conhecido por sua fama de mulherengo e talento em frente às câmeras. Mas porque, de alguma forma, ele parecia ter notado algo em mim. Algo que nem eu sabia direito se queria que ele tivesse visto. O celular vibrou no meio do trajeto. Uma notificação nova: Mensagem de número desconhecido. “Oi, Isadora. Aqui é o Vitor, assessor do Pedro. Ele gostaria de marcar um encontro pra conversar com você. Pode ser essa semana? Prometo que não é nada formal.” Fiquei olhando para a tela por alguns segundos, sentindo o coração acelerar de um jeito que não fazia sentido nenhum. Nada formal. Nada específico. Apenas mais perguntas. Respondi com a naturalidade de quem faz isso o tempo todo: “Olá, Vitor. Claro, posso hoje, depois do expediente. Onde seria?” O “encontro” foi marcado para uma cafeteria discreta no centro, perto da redação. Um lugar pequeno, acolhedor, meio escondido, quase como se o próprio ambiente já soubesse que o assunto não era para holofotes. Guardei o celular e suspirei, tentando voltar à programação normal. Mas era impossível ignorar a sensação de que alguma coisa estava prestes a sair dos trilhos. Eu ainda não sabia o que Pedro Dantas queria comigo, mas uma coisa era certa: aquilo tudo estava bem longe de ser só um agradecimento por uma matéria. E no fundo, eu já não tinha mais tanta certeza se queria que fosse só isso. A cafeteria ficava escondida numa travessa da avenida principal, quase invisível pra quem não prestava atenção. Talvez fosse essa a ideia. Discrição. Cheguei pontualmente às seis. Estava com minha bolsa a tiracolo, um vestido azul-marinho que me fazia parecer mais séria do que eu me sentia e uma dose nada saudável de cafeína já correndo nas veias. Pedro Dantas ainda não havia chegado. Um alívio, eu odiava ser a última a chegar em qualquer situação. Principalmente quando não fazia ideia do que esperar. Escolhi uma mesa no canto, com visão estratégica da porta, e pedi um cappuccino. Enquanto esperava, tirei da bolsa um caderno de anotações, meu escudo emocional em ambientes incertos. Comecei a rabiscar qualquer coisa, fingindo que estava ocupada. A verdade? Eu estava prestando atenção em cada pessoa que entrava. O sino da porta tocou. Levantei os olhos e vi Pedro atravessando o espaço pequeno com a naturalidade de quem sempre carrega o centro do ambiente com ele. Camisa preta, jeans escuro, óculos escuros ainda no rosto mesmo ali dentro. Havia algo ensaiado nele, como se estivesse o tempo todo se apresentando a uma plateia invisível. Mas, ele também acompanhava uma aura que fazia qualquer um focar a atenção somente nele. Quando me viu, sorriu. E eu… não sorri de volta de imediato. Era meu mecanismo de defesa. — Isadora. — Ele tirou os óculos e se aproximou da mesa com um charme discreto e confiante. — Obrigado por aceitar vir. — Achei que podia valer a pena descobrir o motivo da convocação misteriosa — respondi, tentando manter meu tom neutro. Ele sentou-se à minha frente e sinalizou para a garçonete, pedindo um expresso curto. Claro. Obviamente. — Nada muito misterioso — ele disse. — Só achei que merecia uma conversa fora das câmeras. — Porque a entrevista foi... intensa? — Porque você me olhou como se tivesse me entendido. E ninguém faz isso sem um pouco de curiosidade envolvida. Pisquei algumas vezes. A frase parecia saída de um roteiro. Mas havia algo no jeito que ele me disse aquilo — sem ironia, sem jogo — que me desarmou por dois segundos. — Curiosidade é parte do meu trabalho — respondi, bebendo mais um gole de cappuccino. — Mas não se preocupe, ainda não decidi se você vai virar tema de coluna. Ele riu. Um riso baixo, real. — Você não é nada do que eu esperava. — Eu ouvi isso de um chefe uma vez. Dois dias antes de ser promovida. Pedro inclinou a cabeça, me observando por um segundo longo demais. Um sorriso de canto que deixaria qualquer mulher desarmada. — Você fala com as palavras na ponta da língua, mas não parece muito à vontade com... gente famosa. — Talvez porque já vi gente famosa demais usando as palavras erradas — retruquei, firme. — E também porque tenho um gato que me lembra todos os dias que ninguém é tão especial assim. — Um gato? — Bento. Arrogante. Teimoso. Dorme no meio da minha cama e acha que é meu dono. Você entenderia. — Entenderia mesmo — ele disse, e o sorriso diminuiu um pouco. — A diferença é que o meu Bento se chama imprensa. Eu não esperava por isso. Houve um momento breve, quase imperceptível, em que ele pareceu genuinamente cansado. Quase humano demais pra sua própria fama. — Então por que marcar esse café comigo? Afinal, eu sou representante daquilo que mais te atormenta.— perguntei, direta. Ele se recostou na cadeira. — Porque você escreve como se estivesse ouvindo. E me olhou como se visse algo que nem eu tenho certeza que está lá. E também porque... estou precisando de alguém que não seja uma versão editada da realidade. Meu cérebro começou a disparar hipóteses. Talvez estivesse sondando para que eu escrevesse algo sobre ele. Talvez estivesse apenas testando os limites da jornalista que não pareceu impressionada demais. Mas havia algo naquele olhar que não era fingimento. — Eu não costumo misturar jornalismo com... vida real — disse com cuidado. — E se eu dissesse que não é sobre jornalismo? — Então é sobre o quê? Pedro sorriu, quase como se tivesse gostado da minha desconfiança. — Você vai descobrir. Mas não hoje. Suspirei, cruzando os braços. — Então esse é o jogo? Você me chama pra conversar, j**a algumas frases de efeito e vai embora deixando um ponto de interrogação? — Só queria que soubesse que vou precisar falar com você de novo. E que, quando isso acontecer, espero que ainda esteja disposta a escutar. A garçonete trouxe o café dele. Pedro agradeceu com um aceno, pegou a xícara e bebeu de um gole só, como se estivesse se preparando pra sair antes mesmo de ter chegado de verdade. — Posso perguntar só mais uma coisa? — falei, antes que ele se levantasse. — Pode — ele respondeu, levantando uma sobrancelha. — Por que eu? Ele me encarou com os olhos mais sérios da noite inteira. — Porque você não quer nada de mim. E então, ele saiu. Fiquei ali sentada, encarando o lugar vazio à minha frente, como se o ar tivesse ficado mais denso. O que foi aquilo? Um convite velado? Uma ameaça emocional? Um... aviso? Pisquei algumas vezes, peguei minha xícara e bebi o resto do cappuccino, agora quase frio. Bento tinha razão. Eu devia mesmo começar a escutá-lo mais.