O relógio antigo na parede marcava três da manhã quando Catarine abriu a porta do quarto de Holly.
A penumbra azulada invadia o espaço através das cortinas semiabertas, deixando riscas pálidas sobre o chão de madeira escura.
Ela parou à soleira, silenciosa, ouvindo a respiração irregular do menino, misturada a pequenos gemidos que rasgavam o ar abafado do quarto.
O corpo miúdo estava encolhido sob o cobertor grosso, os cabelos dourados grudados à testa úmida.
Um calafrio atravessou a espinha de Catarine.
— Holly… — sussurrou, cruzando o quarto com passos leves, quase sem tocar o chão.
Sentou-se na beira da cama e afastou com delicadeza os fios de cabelo molhados, pousando a palma fria sobre a testa quente do filho.
Fazia horas que a febre não cedia.
Inspirou fundo, lutando contra o pânico silencioso que ameaçava subir pela garganta.
Não podia chamar um médico.
Nunca podia.
Afastou esse pensamento e puxou o cobertor até o queixo de Holly, como se aquele gesto fosse capaz de protegê-lo de tudo o que o mundo poderia oferecer de cruel.
Ele se remexeu, soltando um gemido fraco.
— Mamãe…
O som rasgou-a por dentro, como sempre fazia.
Mas não respondeu.
Não podia.
Nem ali, na segurança do quarto isolado na ala mais remota da mansão, permitia-se ser chamada assim.
Era uma regra silenciosa.
Uma barreira invisível.
Ela se limitou a acariciar-lhe o rosto, enquanto o observava dormir com a respiração pesada e entrecortada.
A porta se abriu devagar.
Anastácia entrou, trazendo na bandeja um copo com água e uma toalha úmida.
A mulher, de cerca de cinquenta anos, cabelos presos num coque firme e expressão sempre contida, colocou a bandeja sobre a mesa de cabeceira.
— Continua quente — sussurrou, aproximando-se da cama.
Catarine assentiu, passando a toalha suavemente sobre o rosto do menino.
— Não cedeu…
Anastácia a observou por um segundo, com aquele olhar que sempre misturava respeito e um afeto silencioso, antes de dizer:
— Deveríamos chamar um médico.
Catarine fechou os olhos por um instante, como quem repele uma ideia perigosa.
— Não.
Anastácia suspirou, já conhecia aquela resposta, mas, mesmo assim, insistia — talvez na esperança de que um dia ela cedesse.
— E se for algo grave…?
Catarine manteve o olhar fixo no menino, os dedos deslizando devagar sobre o lençol macio.
— Não é.
Mas o medo estava ali, escondido na rigidez dos ombros, na tensão do maxilar apertado.
Anastácia não disse mais nada. Apenas se sentou na poltrona ao lado da cama, respeitando o silêncio como sempre fazia.
Catarine voltou a ajeitar o cobertor sobre Holly, apertando-o como quem tenta proteger o filho não só da doença, mas também do mundo que a obrigava a escondê-lo.
Ali, naquele quarto, não havia a empresária poderosa, a figura pública que dominava capas de revistas, nem a mulher fria e intocável que construíra com tanto sacrifício.
Ali, só havia uma mãe — exausta, assustada e completamente sozinha.
Holly tossiu e abriu os olhos por um segundo, procurando-a no escuro.
Ela inclinou-se mais, pegando-lhe a mão pequena e quente entre as suas.
— Estou aqui… — murmurou, permitindo-se aquele fio de vulnerabilidade.
Ele apertou os dedos dela, num gesto automático, e logo voltou a fechar os olhos.
O quarto mergulhou novamente no silêncio, quebrado apenas pela chuva fina que batia contra as janelas da mansão.
Catarine encostou-se à cabeceira, mantendo a mão sobre o peito do filho, sentindo a respiração dele, como se só assim pudesse ter certeza de que ele ainda estava ali, com ela.
Não sabia há quanto tempo estava acordada. Talvez desde que a febre começara, dois dias antes.
Não podia correr riscos.
Não podia permitir que alguém de fora cruzasse aquela porta.
Ninguém podia saber.
Ninguém podia sequer imaginar que a mulher mais poderosa da cidade, a empresária fria e calculista, tinha um filho escondido nos confins de sua própria casa.
Ela inclinou-se e beijou de leve a testa quente do menino, sentindo a pele úmida, frágil, indefesa.
Aquela criança era a única coisa que restava da mulher que fora um dia.
A única parte que não conseguira enterrar.
Anastácia levantou-se e recolocou a toalha na bacia de água fria, torcendo-a com força.
— Vai passar… — disse, mais para si mesma do que para Catarine.
Ela assentiu, mas não acreditava nisso de verdade.
Não quando o corpo do filho ardia daquela forma.
Não quando o medo de perdê-lo era maior do que o medo de ser descoberta.
Acomodou-se melhor, deslizando um pouco para o lado, e olhou para o quadro na parede: uma pintura antiga, que escolhera justamente por ser neutra, sem identidade, sem história.
Como tudo naquela casa: sem pistas, sem vestígios.
Só o quarto de Holly destoava daquele minimalismo calculado.
Ali havia brinquedos, livros infantis, desenhos colados na parede.
Pequenos sinais de uma infância que ninguém fora daquela casa jamais saberia que existia.
Ela fechou os olhos por um segundo, tentando bloquear os pensamentos, mas não conseguiu.
Recordou-se do dia em que trouxera Holly para casa, ainda um bebê.
Sozinha, como sempre.
Sem testemunhas, sem certidão pública, sem fotos.
Apenas ela, Anastácia e o silêncio.
A primeira febre dele, os primeiros passos, as primeiras palavras — tudo acontecera ali, escondido do mundo, sob a sombra da mulher que ela fingia ser.
E, mesmo agora, anos depois, continuava vivendo essa farsa com perfeição.
Poderia entrar em qualquer evento social, desfilar pela passarela da sua marca, negociar contratos milionários e encantar jornalistas…
E ninguém, absolutamente ninguém, desconfiaria que, ao final de cada noite, ela atravessava os corredores silenciosos da mansão para sentar-se ao lado do filho adormecido.
Holly se remexeu, tossindo mais uma vez, com o rosto franzido de dor.
Ela apertou sua mão com mais força.
— Shhh… mamãe está aqui… — sussurrou, mesmo sabendo que ele já não a ouvia, mergulhado num sono febril e pesado.
Anastácia aproximou-se outra vez.
— Quer que eu fique?
Catarine balançou a cabeça, recusando.
— Não.
A babá hesitou, como sempre fazia quando via a patroa naquele estado vulnerável, mas acabou acatando.
— Estarei no quarto ao lado, se precisar.
Catarine assentiu e ficou ali, sozinha, observando o filho respirar com dificuldade, como quem guarda um tesouro frágil demais para ser exposto ao mundo.
Passaram-se horas sem que ela se movesse.
O céu escureceu ainda mais, e a chuva engrossou.
Só quando percebeu que a febre começava, finalmente, a ceder, permitiu-se relaxar os ombros.
Tocou a testa dele novamente: ainda quente, mas menos do que antes.
Suspirou aliviada, fechando os olhos por um segundo, antes de se levantar e ajustar as cortinas, deixando o quarto mergulhar numa escuridão mais completa.
Precisava descansar.
Mas não conseguia se afastar.
Voltou a sentar-se na poltrona ao lado da cama, os olhos fixos no menino, como sempre fazia desde que ele nascera.
A única coisa que nunca terceirizava.
A única parte da sua vida que jamais deixaria escapar.
Quando, enfim, Holly respirava de maneira mais tranquila, ela inclinou-se, beijou-lhe novamente a testa e sussurrou:
— Você é tudo…
E, como sempre, guardou aquele amor dentro de si, onde ninguém jamais pudesse encontrar.
Levantou-se devagar, cruzou o quarto silencioso e fechou a porta atrás de si com o mesmo cuidado com que protegeria o maior de todos os segredos.
Ao sair, seu rosto voltou à neutralidade fria e impenetrável que a cidade conhecia.
Naquela casa, naquele quarto, ela era mãe.
Lá fora… apenas Catarine Vasquez.
E ninguém jamais saberia a diferença.