Damian
A manhã nasceu de aço no vidro. Eu já estava de pé quando a cidade acendeu seus motores, não durmo muito quando a lua fica plantada na cabeça. O café subiu da cozinha como fumaça disciplinada. Revisei contratos, apaguei duas mensagens do conselho e outra de um aliado antigo que insiste em chamar obsessão de erro. Erro é perder. Obsessão é método. Ela apareceu na sala com o cabelo preso num nó alto e uma camiseta ampla que não dizia nada e dizia tudo: não estou aqui para desfilar para você. Os pés descalços, o queixo erguido. O corpo ainda falava a língua da madrugada, eu reconheci. — Bom dia, — disse. — É? — ela respondeu, não exatamente hostil, não exatamente aberta. Apontei a mesa. Sucos, frutas, pão aquecido, ovos. Fiz sinal para que sentasse. Sentei ao lado, não de frente. Domínio também é geometria. — As regras, — comecei, sem firulas. — Segurança vinte e quatro horas. Você tem acesso às áreas que já mostrei. Quando quiser sair, me avise. Vou organizar a rota e a escolta. — “Quando quiser”? Ou “se eu quiser”? — Ambas. — Bebi um gole de café. — Horários restritos por enquanto. A imprensa gosta de caça fresca. — Eu não sou caça. — Concordo. É motivo. Ela pousou o talher. — Eu tenho aula hoje. — Cancelada, — respondi, calmo. — Por uma semana. Até estabilizarmos nossas vidas. — Você cancelou? — Eu pedi. E paguei a remarcação. — Você não é meu agente, — disse, os olhos firmes no meu rosto. — Não. Sou seu marido. — E isso te dá o direito de cortar a minha vida? — Dá o dever de protegê-la. Ela riu curto. — “Proteção” é a sua palavra preferida para “controle”. — Você fala como quem nunca foi alvejada. — E você fala como quem esqueceu que eu existo antes e depois do seu sobrenome. Mantive a voz baixa: — Minha esposa não precisa de liberdade. Precisa de proteção, e de mim. O silêncio que veio não foi de rendição. Foi de barulho interno. Eu ouvi… indignação, medo, vontade de me jogar a bandeja. Bom. Vontade é a língua que eu entendo. — E se eu decidir algo sem te consultar? — ela perguntou. — Não decide. — Você quer me enjaular. — Quero que respire. — Com sua mão na minha garganta? — Com minha mão tirando outras mãos da sua garganta. Ela se inclinou para a frente, os olhos queimando como torres de sinal. — Você não sabe o que fazer comigo quando eu digo “não”. — Sei. Espero, — respondi. — E reforço as cercas. — Isso não é casamento. — Isso é sobrevivência. Ela ficou de pé. Eu fiquei também. Distância justa para que o corpo lembrasse o caminho. O lobo ergueu a cabeça, eu contei até oito. — Ontem à noite, — ela disse, medindo sílabas, — vi algo… diferente em você. — O quê? — Não sei. — Desviou um segundo. — Talvez eu estivesse com sono. — Talvez, — aceitei, deixando a pergunta pendurada, não entrego respostas antes da hora. Ela respirou fundo. — Vou ver meus pais hoje. — Amanhã, — corrigi. — Hoje não. — Você prometeu “sempre que eu pedir”. — Eu cumpro promessas. E cumpro o calendário que as torna possíveis. — Você é impossível. — Sou inevitável. Ela balançou a cabeça, irritada, linda. — Eu não quero sua vigilância. — Quer sim, — falei, sem elevar o tom. — Não a minha, a de alguém. Você nasceu medindo riscos para outros. Agora eu meço os seus. — Você não sabe me medir. — Estou aprendendo. — E quando terminar essa aula, vai fazer o quê comigo? — perguntou, um riso áspero na beira. — Vai me marcar? Vai me pendurar no seu mural de vitórias? O lobo latiu dentro do esterno, um som que nenhum estetoscópio captura. Marca. Palavra que abre portões em mim. Não agora, repeti ao meu corpo. — Vou te manter viva, — disse apenas. — E inteira. — Inteira sob suas condições. — Inteira, — repeti. Ela deu a volta na mesa, passos lentos que sabiam exatamente onde me ferir sem tocar. Parou na minha frente. — Você não entende uma coisa, Damian. Eu posso até dormir no seu teto, comer na sua mesa e usar seu anel. Mas a minha vontade não cabe nos seus relatórios. — Eu não faço relatórios da sua vontade, — respondi. — Eu os arquivo. — Armazena, então, — ela desaforou, — porque hoje minha “vontade arquivada” diz que eu vou sair. Sem escolta. Sem aviso. — Não. — Vai me impedir? Vai me trancar? — Não preciso. — Apontei a vista. — A cidade me conta onde você está. — Você não é deus. — Não. — Inclinei o corpo, um grau. — Sou quem atende quando o mundo não atende. Por um instante, o ar ficou fino. A boca dela abriu para um argumento, o corpo, porém, disse outra coisa. Senti o cheiro antes do pensamento: alerta, adrenalina, desejo lutando contra a autodefesa. A ferocidade que amo. — Fica longe, — ela sussurrou. — Estou longe, — menti. Eu queria marcá-la ali, no brilho da manhã, no lugar mais humano possível. Queria dentes, queria a pele dela com o meu nome antigo. O lobo empurrou as costelas por dentro, exigiu. Eu prendi. Controle é guerra diária. — Você não precisa de liberdade, — repeti, baixo, aproximando milímetros. — Precisa de mim dizendo onde termina o risco. — Eu decido meu risco. — Não enquanto eu puder respirar por você. — Isso não é amor. — Eu não falei de amor. — Então o que é? — É aliança, — respondi, e minha voz saiu mais grave que o planejado. — É destino. — Eu não acredito em destino. — Ele acredita em você. A mão dela veio para empurrar meu peito. Segurei o impulso com um dedo no pulso, leve, pedindo silêncio à tempestade do corpo dela. O toque acendeu ambos. O âmbar roçou minha visão. A respiração dela subiu. Eu poderia soltar. Soltei? Não. Puxei-a pela cintura com a medida exata que cabia no mundo e fora dele. O beijo não pediu passagem. Tomou. O primeiro impacto foi choque, dentes quase se encontrando, depois, calor. A boca dela resistiu um segundo, no segundo seguinte, respondeu, como quem xinga em idioma que vira música. Minha mão subiu para a nuca, a dela encostou no meu ombro, não para me aproximar, para manter o equilíbrio do próprio ódio. — Damian… — ela disse contra minha boca, raiva e fogo. — Fala, — pedi, e a palavra virou comando. O lobo latiu de triunfo, eu apertei o freio com todas as forças que possuo. Não haveria marca hoje. Haveria memória. Haveria a certeza de que, quando eu quiser, ela lembrará o caminho sozinho. Afastei um centímetro. O suficiente para olhar. O suficiente para ver os olhos dela brilharem de fúria e de outra coisa que doía admitir. — Nunca faça isso sem pedir, — sussurrou. — Peço agora, — retruquei, rouco. — Mais. — Não. — Então guardo. Soltei. O ar voltou a existir entre nós, pobre coitado. Ela levou a mão aos lábios, como quem checa se ainda estão no lugar. — Você acabou de provar o meu ponto, — disse, respirando. — Vigilância não é proteção. — Você acabou de provar o meu, — respondi. — Instinto não mente. — O seu. — O nosso. Ela recuou dois passos, tensa como arco. Eu não avancei. O corpo inteiro ardia, mas controle é arquitetura, sustenta a casa quando a tempestade insiste. — Saio às três, — avisou, retomando a voz lisa por cima da pele incendiada. — Com escolta. Meus termos. — Meus termos, — corrigi. — Levo você. Pessoalmente. — Não confio em você. — Não precisa. Eu confio em mim. — Isso é o problema. — Isso é a solução. Ela me odiou por um segundo. E naquele segundo eu soube que a odeio de volta por me fazer querer ser melhor do que fui programado para ser, e pior do que eu já fui. — Acabou a reunião? — perguntou, seca. — Por agora, — respondi. Ela virou as costas e andou. Eu fiquei, ouvindo o lobo roçar as grades por dentro, faminto. Não dei a chave. Não hoje. Amanhã talvez eu precise. Hoje, a coleira segura. Hoje, eu a deixo ir dois passos para poder trazê-la três de volta. Da janela, a cidade brilhava como faca lavada. Eu toquei o vidro e pensei, sem voz: — “Minha Luna. Ainda sem marca, já minha. E cada regra que ela detesta é o fio que a mantém viva, enquanto eu aprendo a não quebrar o que prometi proteger.”