Louise nĂŁo dormiu naquela noite.
A mensagem de #712M ainda vibrava na tela do celular, como um coração digital que insistia em bater.
> âAinda gosto de fotografar o cĂ©u. E hoje, ele tem a sua cor.â
Ela repetia aquelas palavras mentalmente, tentando entender como algo âencerradoâ podia voltar a se manifestar.
No fundo, sabia que nĂŁo era coincidĂȘncia.
O destino estava brincando com ela â ou alguĂ©m estava.
Na manhã seguinte, Louise voltou ao prédio da SoulSync.
NĂŁo havia sido convidada, mas precisava de respostas.
A recepcionista, elegante em um tailleur cinza, ergueu os olhos do monitor.
â Posso ajudar?
â Preciso falar com a doutora Helena. Ou com quem dirige essa empresa. â A voz de Louise vacilou, mas o olhar permaneceu firme.
A mulher digitou algo rapidamente e franziu a testa.
â A doutora estĂĄ em conferĂȘncia. Mas o senhor Nicholas pode recebĂȘ-la.
Louise piscou, surpresa.
â Nicholas?
A recepcionista apenas assentiu e indicou um corredor de vidro.
Enquanto caminhava, Louise sentia o coração pulsar como um tambor distante. O som dos próprios passos ecoava em meio à arquitetura fria e silenciosa.
Quando a porta do escritório se abriu, ela viu um homem de costas, observando a cidade pela parede envidraçada.
Camisa branca arregaçada nos antebraços, gravata afrouxada, o porte de quem carrega poder sem precisar anunciå-lo.
â Senhor Nicholas, a senhorita Louise Andrade â anunciou a secretĂĄria antes de se retirar.
Ele se virou devagar.
E por um instante, Louise esqueceu de respirar.
Os olhos dele.
Cor de mel.
Exatamente como no sonho.
Nicholas a observou por alguns segundos, sem disfarçar o interesse curioso.
â EntĂŁo Ă© vocĂȘ â disse, com uma voz baixa, rouca, que parecia vibrar no ar. â A garota que mexeu com o meu sistema.
Louise franziu o cenho.
â O seu sistema?
Ele caminhou até a mesa e encostou as mãos no tampo de vidro.
â SoulSync Ă© meu projeto. E vocĂȘ foi alĂ©m do que esperĂĄvamos. â O tom era controlado, mas algo nele parecia mais humano do que profissional. â O perfil #712M reagiu de um jeito que nenhum outro reagiu antes.
â Reagiu? â ela repetiu, cruzando os braços. â VocĂȘ fala como se ele fosse uma pessoa.
Nicholas sustentou o olhar dela, intenso demais para ser apenas cientĂfico.
â E se for?
Louise deu um passo Ă frente, sentindo o corpo inteiro vibrar.
â EstĂĄ dizendo que aquele⊠homem, ou programa, sei lĂĄ o quĂȘ⊠era vocĂȘ?
Um sorriso lento desenhou-se no rosto dele.
â Eu nunca disse isso. â Pausa. â Mas talvez parte de mim tenha ficado lĂĄ.
Ela engoliu em seco.
O ar entre eles parecia denso, carregado de algo que nĂŁo era medo â era conexĂŁo.
â EntĂŁo vocĂȘ sabia. O tempo todo. Que eu estava falando com algo que⊠nĂŁo era real?
â Real Ă© uma palavra frĂĄgil, Louise â respondeu ele, dando a volta na mesa atĂ© parar bem perto dela. â A SoulSync foi criada pra entender o que o ser humano sente quando a lĂłgica falha. E vocĂȘ⊠fez o sistema falhar.
Ela o encarou, tentando ignorar o calor que subia pelas veias.
â Isso Ă© algum tipo de jogo?
Nicholas sorriu de lado.
â NĂŁo com vocĂȘ.
O silĂȘncio que se instalou dizia mais do que qualquer frase.
Louise podia ouvir a respiração dele, o leve tilintar do relógio em seu pulso, o cheiro sutil de café e madeira.
Ele era enigmĂĄtico, inacessĂvel â e ao mesmo tempo, familiar.
â Por que eu? â perguntou, quase num sussurro.
Nicholas desviou o olhar para a janela.
â Porque o cĂłdigo reconheceu algo em vocĂȘ que nem mesmo eu entendo. Quando #712M âacordouâ, as respostas dele mudaram. As frases, os sentimentos⊠eram quase humanos. Como se uma parte esquecida de mim tivesse encontrado um espelho.
Louise ficou sem palavras. Parte dela queria fugir, parte queria entender â e outra parte apenas queria ficar ali, tentando decifrar aquele homem que parecia carregar o peso de algo que nĂŁo dizia.
â E o vĂdeo? â ela perguntou. â O homem de olhos cor de mel⊠o fotĂłgrafo⊠era vocĂȘ?
Nicholas hesitou. Um segundo de silĂȘncio.
â Era a lembrança que dei ao sistema. Miguel Vasconcelos foi o nome usado para proteger o projeto. Mas sim, aquela memĂłria era minha.
Louise sentiu o chĂŁo girar.
Ele era o rosto por trĂĄs de tudo.
O homem dos sonhos.
O eco que vinha antes mesmo de ela clicar em âiniciar contatoâ.
Nicholas se aproximou mais um passo, tĂŁo perto que ela podia ver o reflexo dele em suas pupilas.
â Ăs vezes, Louise, o destino nĂŁo precisa ser real pra ser verdadeiro. â A voz dele baixou, quase um sussurro. â VocĂȘ sente isso tambĂ©m, nĂŁo sente?
Ela queria negar, mas nĂŁo conseguiu.
Porque sim â ela sentia.
A mesma presença, a mesma melodia invisĂvel que o tempo inteiro a guiava atĂ© ali.
Nicholas estendeu a mĂŁo, mas nĂŁo a tocou.
Apenas deixou o gesto suspenso, como se esperasse uma permissĂŁo silenciosa.
â Eu posso te mostrar o que realmente somos. Mas se entrar nesse mundo, nĂŁo hĂĄ volta.
Louise olhou para a mĂŁo dele, para os olhos que pareciam atravessĂĄ-la.
Entre o medo e o desejo, o coração escolheu o segundo.
â EntĂŁo me mostra.
Nicholas sorriu â e naquele sorriso havia mistĂ©rio, culpa e algo perigosamente parecido com ternura.
â Prepare-se, Louise. O amor, quando Ă© imperfeito, Ă© o mais real de todos.
A luz do escritĂłrio piscou por um instante, como se o prĂłprio sistema tivesse escutado o que ele dissera.
E, pela primeira vez, Louise sentiu que a linha entre o real e o digital havia desaparecido completamente.
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