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Capítulo 3 – Entre o Céu e o Abismo

THIAGO

O calor úmido do Rio me acertou no rosto assim que desci do jato. Era como um tapa de realidade. Não importava o ar-condicionado gelado da aeronave, o silêncio confortável da cabine, o uísque caro ou as conversas evitadas – ali, no solo brasileiro, tudo parecia mais real.

Mais urgente.

O motorista me esperava já na pista, o carro de luxo com os vidros escuros e ar ligado no máximo. Não troquei muitas palavras. Apenas entrei, afrouxei a gravata e pedi:

— Me leva pro hotel, preciso de um banho e umas horas de paz.

O caminho até Ipanema foi silencioso, exceto pelo burburinho abafado do trânsito e o som do mar ao longe. As palmeiras balançando na orla e o céu começando a alaranjar indicavam o fim do dia. Uma beleza que, em outro momento, talvez me tirasse um sorriso. Agora, só reforçava a sensação de deslocamento.

No hotel, um cinco estrelas conhecido por sua discrição e conforto, o quarto já estava pronto. Suíte ampla, com vista pro mar, cama king-size e minibar recheado.

Joguei o paletó na poltrona, tirei os sapatos e fui direto pro chuveiro. A água quente escorrendo pelas costas parecia levar embora parte do peso, mas não todo. A imagem da Mirela — mais nova do que eu lembrava, mais frágil do que eu estava preparado pra ver — se mantinha fixa nos meus pensamentos, como se o tempo tivesse parado no momento em que vi aquela última foto no I*******m, que mal dava pra ver nada.

Saí enrolado apenas na toalha e servi outro uísque. Me joguei na cama ainda úmido, o copo na mão e a cabeça girando.

— Só algumas horas, Thiago — murmurei pra mim mesmo. — Amanhã você encara essa garota.

E que Deus me ajude a saber o que dizer quando isso acontecer.

---

O teto branco do quarto de hotel não tinha nada de especial, mas era o que eu encarava fazia quase uma hora, sem conseguir dormir. A bebida já estava pela metade, o gelo derretido, e o gosto amargo parecia mais forte agora. Talvez fosse culpa da lembrança que veio sem ser convidada.

Mirela, aos cinco anos. Vestidinho florido, joelhos ralados e um laço azul ridículo preso no alto da cabeça. Ela corria entre os adultos na festa de fim de ano da empresa do Caio, fugindo do fotógrafo e rindo alto, como se fosse dona do mundo.

— Tio Thi, me pega no colo! — gritou ela, no meio do salão, e todo mundo virou pra olhar.

"Tio Thi." Ela me chamava assim desde sempre, mesmo eu insistindo que não era tio de sangue. Mas Caio dizia que eu era mais irmão do que os que ele poderia ter tido, e Mirela herdou esse costume como se fosse parte do DNA dela.

Naquele dia, eu estava com uma das recepcionistas do evento. Uma loira artificial, com um decote que desafiava a gravidade. Mirela se enfiou no meio dos dois, com as mãozinhas sujas de brigadeiro e um sorriso vitorioso no rosto.

— Você é meu tio, não dela — disse, abraçando minha perna com força.

A loira torceu a boca. Eu ri. E Mirela ficou ali, sentada no meu colo, até adormecer com a cabeça encostada no meu peito, mesmo com o barulho da música e das conversas ao redor.

Mirela foi a única pessoa que eu me conectei de verdade até hoje, a doçura dela era encantadora e os olhos azuis conversavam comigo mesmo sem palavras.

Suspirei, o copo firme entre os dedos.

Ela cresceu. Eu também. Mas aquela garotinha do vestido florido ainda vivia em algum canto da minha memória.

E agora... agora ela estava sozinha no mundo. E era a minha vez de cuidar dela.

Mesmo que isso significasse enfrentar a parte de mim que nunca quis ser responsável por ninguém.

Mesmo que isso significasse, talvez, pela primeira vez na vida… crescer.

---

O carro parou diante de uma casa simples e bem cuidada, numa rua arborizada de um bairro tranquilo do Rio. Uma dessas casas com portão baixo e uma samambaia caída na varanda, onde a vida parece seguir devagar, longe do caos.

Olhei para o papel em minhas mãos — o endereço que me deram por telefone, quando me informaram que Mirela estava ficando na casa de uma amiga desde o enterro.

Engoli em seco. A ideia de vê-la depois de tudo o que aconteceu me fazia sentir como se estivesse atravessando um campo minado. Não era medo, era... peso. Culpa, talvez. Ou uma sensação desconhecida de responsabilidade.

Toquei a campainha. Uma moça jovem, da idade da Mirela, abriu a porta com os olhos baixos e expressão séria.

— Oi… você deve ser o padrinho da Mi, né? A Mirela tá no quintal. Ela não fala muito... mas acho que ela tá esperando por você.

Atravessar aquela casa foi como pisar em um território sagrado. Pequena, aconchegante, com cheiro de café fresco misturado ao aroma de incenso. Mirela estava sentada no fundo do quintal, numa rede encostada entre duas colunas, de cabeça baixa. Sozinha.

A imagem dela me atingiu como um soco no estômago.

Nada de lágrimas, gritos ou desespero. Ela apenas estava ali, vestida com uma calça jeans surrada e uma blusa branca simples, o cabelo preso num coque desfeito, o olhar perdido num ponto invisível.

Ela me ouviu se aproximar, mas não se virou. Só falou:

— Eu achei que você não viria.

A voz dela… doce, cansada, madura demais para uma menina de dezessete anos.

— Eu nunca deixaria você sozinha — respondi, firme, tirando os óculos escuros.

Ela olhou por cima do ombro, devagar. E naquele olhar havia tudo. A infância. A dor da perda. A luta para não desabar. E algo que me desarmou por completo: dignidade. Mirela estava se segurando com todas as forças que ainda restavam nela. Não havia mais espaço pra ser apenas uma menina.

— Eles se foram, Thiago. Me deixaram sozinha no mundo.

— Você não tá sozinha — respondi, me agachando à frente dela. — Eu tô aqui, pequena. — Chamei ela da forma que chamava quando ela realmente era pequena.

— Por quanto tempo? Tio? — ela devolveu, me chamando de tio.

— O tempo que for necessário.

Ela piscou lentamente, e percebi que as lágrimas vinham, mas ela se recusava a deixá-las cair. Orgulho ou sobrevivência — talvez um pouco dos dois.

— Você não sabe cuidar nem de você... como vai cuidar de mim?

Sorri, sem saber se era tristeza ou ironia.

— Boa pergunta, pequena. Mas eu vou descobrir. Nem que eu tenha que mudar tudo.

Ela não respondeu. Apenas estendeu a mão e tocou a minha, com delicadeza. Pela primeira vez em muitos anos, senti que o tempo desacelerava ao nosso redor.

Naquele instante, entendi: o que Caio e Helena me deixaram não era só uma herança ou um pedido de última hora.

Era um pedaço deles. O mais precioso.

E agora... era minha missão proteger esse pedaço.

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