Inicio / Romance / Além de ser meu Padrinho / Capítulo 2 — Herança Indesejada
Capítulo 2 — Herança Indesejada

THIAGO

Paris.

Cobertura de luxo.

O relógio marcava quase meia-noite quando servi mais uma dose de uísque. A cidade brilhava através das enormes janelas de vidro, e a música suave tocava ao fundo, criando a atmosfera perfeita para encerrar uma noite de reuniões bem-sucedidas.

No sofá, uma morena francesa que eu mal lembrava o nome desenhava círculos preguiçosos em meu peito. Do outro lado, uma ruiva, que falava pouco inglês, ria de algo que eu não tinha prestado atenção. Era mais uma noite comum na vida que eu escolhi.

Então, o celular tocou.

Ignorei. Quem me ligaria àquela hora que não pudesse esperar até amanhã?

Mas tocou de novo. E de novo.

— S'il vous plaît, ne répondez pas au téléphone — Disse a francesa com biquinho.

Soltei um suspiro, afastando a mulher sobre mim e peguei o aparelho. Número desconhecido, mas era do Brasil.

— Quem é? — Atendi seco.

O silêncio do outro lado da linha durou longos dois segundos. Então, uma voz masculina e séria preencheu o espaço.

— Senhor Abdalla, meu nome é Eduardo Vasconcellos. Sou advogado da família Almeida. Preciso falar com o senhor sobre uma questão urgente.

Almeida. O sobrenome soou familiar, mas minha mente ainda estava envolta no álcool e no cansaço.

— Fala logo.

O advogado pigarreou antes de soltar a bomba:

— É sobre os pais de Mirela Almeida, sua afilhada. Eles faleceram esta tarde em um acidente de helicóptero no litoral de São Paulo.

O mundo ficou em silêncio por um momento.

Tirei o telefone do ouvido e encarei a tela como se a ligação fosse desaparecer se eu ignorasse. Mas quando voltei o aparelho ao rosto, a voz ainda estava lá.

— Senhor Abdalla?

Pisquei algumas vezes, sentindo um peso estranho se instalar no peito. Caio e Helena mortos? Era absurdo. Eu os conhecia há anos, não éramos mais tão próximos, mas tínhamos laços.

Eu era padrinho da filha deles, afinal.

— O que isso tem a ver comigo? — perguntei, minha voz mais dura do que eu pretendia.

— O senhor foi nomeado tutor legal da Mirela até que ela complete dezoito anos.

Soltei uma risada sem humor.

— Deve estar de brincadeira comigo.

— Estou apenas cumprindo meu dever, senhor. Caio e Helena confiaram ao senhor a guarda da filha. Sei que é um choque, mas preciso que compareça o mais rápido possível. A minina Mirela precisa do senhor.

Mirela.

A garota era praticamente uma criança na última vez que a vi. Eu tinha um carinho por ela, era uma criança doce e carinhosa.

Mas cuidar dela?

Isso estava fora de cogitação.

Passei a mão pelo rosto, sentindo a ressaca da noite anterior se misturar com o incômodo dessa conversa.

— Não sou o tipo de homem para criar ninguém, doutor. Deve haver outro familiar mais adequado.

— Não há. Os pais dela deixaram isso bem claro no testamento.

Ótimo. Um casal que ultimamente mal me via decidiu que eu, Thiago Abdalla, o homem mais egoísta, deveria virar babá da filha deles.

— Preciso pensar.

— Não há tempo para pensar. O enterro será amanhã. Mirela está sozinha, e o senhor é a única pessoa que pode assumir essa responsabilidade agora.

Passei a língua pelos lábios, olhando ao redor. As mulheres na minha cama, as garrafas espalhadas, a cidade luz brilhando lá fora. Essa era a minha vida. Isso era o que eu fazia de melhor.

Ser tutor de uma garota de dezessete anos?

Definitivamente, não fazia parte dos meus planos.

Mas, gostando ou não, eu não tinha escolha.

— Estou pegando o primeiro voo de volta.

Desliguei e joguei o celular na mesa de centro. Levantei, ignorando as vozes manhosas das mulheres ainda na cama, e fui direto para o banheiro.

A festa havia acabado. E, pela primeira vez em muito tempo, eu não sabia o que viria depois.

---

O jato já estava no ar há algumas horas. Lá fora, o céu escuro se estendia infinito, pontilhado por estrelas. Dentro da cabine silenciosa, apenas o ronco suave das turbinas preenchia o espaço.

Tentei dormir. Fechei os olhos, respirei fundo, mas a mente não desligava. Tudo girava em torno da mesma questão: Mirela.

Abri um dos compartimentos laterais e puxei uma garrafa de uísque. Despejei um pouco no copo, mas antes que pudesse beber, o telefone vibrou ao meu lado.

Peguei o aparelho. Número salvo.

Lucas.

Suspirei antes de atender.

— Fala.

— Thiago, caralho! O que aconteceu? O seu piloto ligou cancelando o nosso rolê no fim de semana. Tu sumiu do nada.

Lucas era um dos poucos amigos que eu tinha. Parceiro de negócios, parceiro de festas. Se alguém me conhecia bem, era ele.

— Mudança de planos.

— Mudança de planos? Você nunca tem mudanças de planos.

Fiquei em silêncio.

— Tá me preocupando, irmão. Cê tá bem?

Segurei o copo com força. Lucas podia ser um desgraçado em muitas coisas, mas sabia quando algo estava errado.

— Os pais da Mirela morreram.

O outro lado ficou mudo. Só se ouvia o barulho abafado da respiração dele.

— Porra... o Caio? — Ele soltou, enfim. — Eu nem sei o que dizer.

— Nem eu.

Outro silêncio.

— E a garota?

— Está sozinha. Eu sou o tutor legal dela agora.

Lucas soltou uma risada seca.

— Puta merda, Thiago. Cê tá fodido.

— Valeu pela motivação, irmão.

— Não, falando sério. Você, tutor? Isso é piada. Cê não sabe cuidar nem das suas próprias ressacas.

Passei a mão pelo rosto, sentindo o peso do que ele disse.

— Eu só preciso aguentar isso por alguns meses. Ela vai fazer dezoito e cair fora.

— Se Deus quiser.

— É.

Outro gole de uísque queimou minha garganta. Lucas ficou em silêncio por um instante, depois falou em um tom mais sério.

— Escuta... Cuidado.

— Cuidado com o quê?

— Sei lá. Essa história toda... É uma mudança grande demais pra um cara como você.

— Para de dramatizar, Lucas. Não é como se eu fosse virar pai da garota.

— Sei.

O tom dele me irritou. Antes que dissesse mais alguma coisa, encerrei a ligação.

Olhei para o copo de uísque e o deixei sobre a mesa sem beber. Pela primeira vez em anos, a bebida não parecia me ajudar em nada.

Afundei na poltrona e encarei a escuridão do céu lá fora.

No fundo, eu sabia que Lucas estava certo.

Isso era uma grande merda.

E eu não fazia ideia de como ia sair dessa.

---

O gelo tilintava contra o vidro enquanto eu girava o copo de uísque entre os dedos. O líquido âmbar descia pela garganta como uma brasa ardente, mas nem isso conseguia aquecer o vazio que crescia dentro de mim.

Peguei o celular. A tela brilhou no escuro da cabine, refletindo meu próprio rosto cansado. Abri o I*******m e digitei o nome dele.

Caio Almeida.

O perfil ainda estava lá. Como se nada tivesse mudado. Como se ele ainda estivesse vivo.

A primeira foto era recente: ele e a esposa, de mãos dadas, sorrisos abertos contra o pôr do sol na praia. A legenda era simples, mas agora parecia um soco no estômago.

"Minha vida inteira tem que ser com você."

E foi, eles começaram a namorar na escola, o Caio só teve ela.

Passei para a próxima. Caio segurando Mirela nos ombros, ambos rindo. A menina tinha o mesmo sorriso da mãe, usava óculos escuros e os cabelos castanhos claros voando. Era fácil ver o quanto ele a amava. Mas não dava pra ver ela, como está a parecia dela hoje.

"Meu tesouro."

Era assim que ele sempre falava dela. O tesouro da vida dele.

Apertei o copo com mais força.

Como diabos ele pôde deixar esse tesouro comigo?

Ele me conhecia. Sabia exatamente o tipo de vida que eu levava. Mulheres, festas, viagens sem destino. Eu nunca fui um homem de laços, nunca quis ser responsável por ninguém além de mim mesmo. Como ele achou que eu poderia criar essa garota?

Mirela não pertencia ao meu mundo.

Fechei os olhos e respirei fundo. Porra, Caio.

Meu amigo sempre foi a porra de um homem perfeito. Casamento estável, pai presente, empresário brilhante. E, ainda assim, ele nunca me julgou. Nunca tentou me mudar. Quando eu afundava, Caio me puxava de volta. Me ajudou em momentos que ninguém mais ajudaria.

E agora... Agora ele não estava mais aqui.

Eu devia isso a ele.

Talvez fosse esse o peso que me incomodava mais do que a ressaca. Não se tratava só de responsabilidade. Era dívida. Eu devia ao Caio mais do que qualquer um poderia imaginar.

Apertei o celular com força antes de bloqueá-lo e jogá-lo de lado.

Pelo menos eram só alguns meses.

Eu podia pausar minha vida por alguns meses.

Depois, Mirela seguiria o próprio destino.

E eu seguiria o meu.

Ou, pelo menos, era isso que eu queria acreditar.

Sigue leyendo este libro gratis
Escanea el código para descargar la APP
Explora y lee buenas novelas sin costo
Miles de novelas gratis en BueNovela. ¡Descarga y lee en cualquier momento!
Lee libros gratis en la app
Escanea el código para leer en la APP